O Concursus Providencial de Deus
O Concursus Providencial de Deus
por Dr. Heber Carlos de Campos
Como Deus age e tudo chega exatamente onde Ele determinou? É Deus o autor dos males que há no mundo, inclusive os morais? Como podemos combinar a sua natureza santa com o que acontece de mal no mundo? Ele opera sozinho?
É necessário que entendamos o governo de Deus teleologicamente, isto é, como que objetivando um fim. Seu governo é uma presença real entre os homens e Sua atividade continuada, que tem um curso histórico, caminha para o seu cumprimento final. Deus dirige a nossa história, e nós somos os seus agentes. Deus escreve a história e nós a fazemos. Mas essas duas últimas frases poderiam levar ao conceito errôneo de que fazemos a história sozinhos. De modo algum! Deus não está ausente dos eventos e dos atos que os homens praticam. Ele participa em tudo o que fazemos. É aqui que entra o difícil problema do concursus. [1]
Este assunto relacionado diretamente com a providência divina é uma expansão do aspecto da preservação e, ao mesmo tempo, o que dá suporte a toda obra providencial de Deus. Todavia, é mais prudente tratar o concursus propriamente dito não como mais uma forma de providência, mas o concursus está mais ligado ao modus operandi de Deus para que os seus propósitos providenciais sejam devidamente realizados na vida do universo em geral, e de suas criaturas em particular. Portanto, para que Deus preserve, sustente, dirija o mundo torna-se necessária a sua participação em todos os eventos e decisões, a fim de que todos os seus decretos sejam cumpridos.
Definição de Concursus
Escrevendo aos Efésios Paulo afirma categoricamente que Deus “faz todas as coisas de acordo com o conselho da sua vontade”(Ef 1.11). Isto quer dizer que nada do que acontece neste mundo é à parte do cumprimento da vontade de Deus e sem que ele esteja envolvido. A palavra grega que é traduzida como “faz” éenergeo ( de onde vem a palavra portuguesa energia, que é a comunicação de poder ou o fato de Deus trabalhar), que indica o fato de Deus energizar cada obra na qual ele participa. Sem a energia ou o poder divino, nenhum evento acontece e nenhuma obra é feita. A vontade de Deus opera de modo que em todas as coisas tem participação. Nenhum evento que acontece no mundo está fora da providência de Deus.
Portanto, quando tratamos da palavra concursus, estamos tratando da participação divina em todos atos e eventos da história, em cooperação com as causas secundárias, que são os seres criados.
Concursus é o suporte contínuo de Deus para a operação de todas as causas secundárias (sejam elas livres, contingentes ou necessárias), para o cumprimento de Seus santos propósitos. Berkhof define-o como “a cooperação do poder divino com os poderes subordinados, de acordo com as leis pré-estabelecidas para sua operação fazendo-as atuar, e que atuem precisamente como o fazem.” [2]
Deve notar-se que esta doutrina implica em duas coisas:
— que os poderes da natureza não atuam por si mesmos, isto é, por seu próprio poder inerente, mas é Deus quem opera imediatamente em cada ato da criatura. Note-se que este ensino está em oposição ao ensino deísta;
— que as causas secundárias são reais, e que não devem ser consideradas simplesmente como o poder operativo de Deus. Somente assim podemos entender a cooperação da Primeira Causa com as causas secundárias. Deve insistir-se nisto em oposição à idéia panteísta de que Deus é o único agente que opera no mundo.
A relação entre a obra de Deus e a obra do homem aparece muito fortemente vista na doutrina da salvação, mas aparece também na doutrina da providência, e podemos estudá-la de um outro ângulo. A idéia de concorrência encaixa-se perfeitamente na doutrina da salvação como na da providência. Isto significa que a atividade de Deus não exclui a participação humana no que diz respeito às coisas santas e, de modo inverso, nas atividades ímpias dos homens não há exclusão da cooperação divina, para que tudo venha cumprir os propósitos eternos de Deus. Exceto as operações absolutamente imediatas de Deus [3] , todas as outras operações são efetuadas numa cooperação entre os agentes racionais livres e Deus.
No concursus Deus atua com seu poder nos movimentos de todas as suas criaturas. Não há nenhum movimento independente nelas. Não há atos onde elas ajam autonomamente. Todas as criaturas são energizadas pelo poder presencial de Deus em todos os seus atos. Elas não poderiam existir nem atuar sem esse poder energizador de Deus. É desse modo que os dois, Deus e os seres humanos, participam na consecução dos planos divinos.[4]
O Concursus exige que haja duas partes ativas
Quando tratamos da matéria do concursus, não podemos falar apenas numa causa para os movimentos e atividades neste mundo, seja dos homens, dos animais ou dos elementos da natureza. Sempre há duas causas que movem uma ação. A causa primária é sempre divina e a secundária a criatura.
É um erro pensar que quando Deus age, as suas criaturas ficam passivas. Nesse caso, só há um agente. A ilustração para este caso é a de um violinista que toca o violino por meio do arco. Na verdade, o arco é só instrumento, mas ele é totalmente passivo. Somente o violinista age nesse caso.
No caso da cooperação entre Deus e os animais ou homens, temos que enfatizar a ação dos dois. Tem de haver uma cooperação de movimentos. Mesmo que Deus use as criaturas como meios na execução dos seus propósitos, elas têm os seus movimentos nascidos nelas, como se elas tivessem feito tudo o que fazem. Elas não são meros instrumentos passivos. As criaturas são as causas secundárias ativas. Elas são as causas de seus atos.
Se os seres humanos fossem passivos em todos os seus movimentos, eles não poderiam ser considerados como responsáveis. Por conseguinte, não poderiam ser punidos pelos erros que cometeram nem apreciados pelos seus acertos. Todavia, a Escritura é abundante em textos que tratam da responsabilidade humana em todos os seus atos, mesmo embora esses atos tenham tido a cooperação divina, como a causa primária. Homens e mulheres são punidos e recompensados pela justiça distributiva de Deus. A base disto está no fato deles serem ativos e conscientes em todas as coisas que fazem.
Se os seres humanos são passivos nas suas ações, Deus então seria o culpado direto e único dos males morais deste mundo, um praticante do mal e responsável direto por todos os males físicos, sociais e espirituais do mundo. Não podemos admitir uma causa única dos atos e eventos acontecidos neste mundo. Deus e os seus agentes secundários são ativos, de modo que a ação de Deus nunca o torna um praticante do mal, nem o homem é isento de sua responsabilidade.
Se os seres humanos são passivos diante da soberania divina, então não haveria pecado dos homens. Eles nunca poderiam ser acusados de serem idólatras, assassinos, ladrões, desobedientes e coisas semelhantes a essas.
Não podemos atribuir aos bens e aos males deste mundo apenas a uma única causa. Todos os eventos na história do mundo e dos indivíduos têm duas causas. A causa primária, que é Deus, e a causa secundária, que são as suas criaturas.
Concursus da Causa Primária com a Secundária
A matéria da relação entre a causa primária e a secundária, isto é, a concorrência entre a ação de Deus e a ação dos homens, não é fácil de ser explicada. Não sabemos exatamente como esse concursus acontece, mas sabemos que ele é real. Temos que nos reportar à lei da causalidade, que é um dos assuntos mais complexos em teologia e em filosofia. Sproul diz:
“Podemos fazer múltiplas distinções na arena da causa, tais como as descritas como causas formais: causas finais, causas eficientes, causas materiais, e coisas semelhantes. Essas distinções são úteis, mas não são exaustivas. Uma outra distinção importante é a distinção entre causalidade primária e causalidade secundária.[5]
Talvez essa última distinção seja a mais familiar a todos nós por causa do uso delas nos padrões de fé reformados. A Confissão de Fé de Westminster, quando trata do Decreto de Deus e da sua Providência, ensina essa distinção:
“Desde toda eternidade, Deus, pelo seu mui sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.” (III,1)
“Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente.” (V, 2)
É muitíssimo importante que os cristãos aprendam a fazer a distinção entre as duas causas, a primária e a secundária, porque já no tempo da confecção da Confissão havia começado um descrédito nas obras providenciais de Deus por causa da descoberta da lei natural. Hoje, mesmo tendo um clima filosófico diferente, sofremos dos mesmos males onde persiste a dúvida da intervenção divina neste mundo em forma de providência.
Há vários pontos que devem ser observados das citações da Confissão de Fé de Westminster:
— Tudo o que acontece neste mundo é produto do decreto divino. Todas as obras providenciais de Deus fazem parte do decreto.
— Esses eventos acontecerão infalível e imutavelmente. Não há como fugir deles, mesmo os atos maus.
— Deus nunca pode ser considerado o autor do pecado;
— O homem nunca perde a sua liberdade que consiste no fato de nunca ser forçado no que faz. Ele sempre faz o que quer, conforme as disposições da sua natureza interior.
— Todas as causas secundárias agem livremente, conforme a natureza da causa, seja ela física, animal, humana ou angélica.
Não há ato humano que seja feito contra a vontade humana e nunca a liberdade humana é tirada. Todavia, os atos do ser humano não são independentes, mas sempre conectados a uma vontade maior que é a divina, a causa primeira.
Esta matéria também não é fácil de ser digerida mesmo no meio cristão. Há razões para isso, especialmente por causa do conceito vigente de liberdade que, quase que sempre, possui a conotação de autonomia ou de independência. Várias pessoas que estudam a matéria são sempre influenciadas por um libertarismo presente em nosso tempo, mas que já é bem antigo. Porque Deus tem estado fora do pensamento dos homens, estes pensam muito freqüentemente na idéia da liberdade de independência. Porque os homens são seres racionais e livres, eles são contados como seres que realizam suas vontades autonomamente. Para eles, liberdade é sinônimo de autonomia. Do contrário, não é liberdade. Não há que lhes incline para um ato, seja de fora ou de dentro. Mesmo que uma pessoa seja inclinada para um lado, ela sempre pode escolher de forma contrária, porque não existe liberdade sem a capacidade de escolha contrária, segundo os libertários.
Como cristãos que crêem na vontade soberana de Deus sobre todas as coisas, não podemos permitir tão estranho conceito em nosso meio. Cremos na lei da causa e efeito, não por causa da lei em si mesma, mas porque Deus é a causa primeira de todos os fenômenos que acontecem neste seu (e nosso) universo. É universo dele porque ele o criou e o sustenta. É universo nosso porque ele nos botou aqui e nos ordenou que cuidássemos dele, como agentes secundários na execução da sua vontade.
Em qualquer evento ou ação das criaturas neste mundo criado Deus sempre deve ser considerado como a causa primária e os seres racionais as causas secundárias. Não existe nenhum caso onde um ser humano ou angélico age independentemente de uma ação divina. Não existe nenhum ser autônomo, exceto Deus, porque este pode agir imediatamente em qualquer coisa, sem depender de ninguém.
Há algumas verdades que não podemos esquecer quando estudamos a relação entre Deus, a causa primária, e os seres racionais, como as causas secundárias.
1. Todas as criaturas racionais agem espontaneamente, sem que sejam coagidas nas suas ações. Elas possuem um poder de ação e de decisão, todavia, não poderes autônomos.
2. As criaturas são sempre instrumentos de Deus para a execução das obras dele. Portanto, as causas secundárias são sempre subordinadas à Causa primária.
3. Deus é sempre o energizador e o iniciador de uma ação nas criaturas. Estas sempre dependem dele para executarem uma ação, porque não há movimento da criatura que não seja iniciado por ela, todavia, não um movimento independente da ação primeira de Deus.
4. Quando Deus age nos seres humanos, ele o faz numa esfera em que eles não têm acesso, que é o próprio coração deles. As suas vontades sempre haverão de obedecer aos impulsos do coração deles, onde Deus trabalha.
5. Temos que entender que o homem é aquilo que é o seu coração. Quando o homem age ele está obedecendo aquilo que ele próprio é.
6. Por essa razão, as criaturas, como as causas secundárias de uma ação, são sempre responsáveis pelo que fazem, porque elas nunca as fazem levadas ou inclinadas por coisas que não sejam elas próprias.
Isto posto, afirmamos que a distinção entre a primeira causa e as causas secundárias ajudam a explicar as relações entre a ação de Deus e as ações dos seres criados. A causa secundária diz respeito “à força comunicada para as criaturas físicas. A causalidade primária refere-se ao poder causal exercido por Deus no curso dos eventos cósmicos. [6] Nenhum de nós tem o direito de negar que as causas secundárias realmente existem. Todavia, temos que admitir que nenhuma força é exercida neste mundo sem depender do poder da causa primária, que é Deus.
Paulo ensinou a respeito da relação entre as duas causas, a primária e a secundária. Ele disse que em Deus “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Os efeitos dessas duas causas neste mundo tem o seu movimento primeiro em Deus e, depois, em nós. Então, o resultado da ação cooperadora das duas causas aparecem. Deus é a causa primeira e última de tudo o que acontece. Essa causa é independente. A causa secundária e derivada, é a dos seres criados, sendo dependente da primeira. “Deus é uma causa, a fonte de todas as causas e de todas as séries causais. Nenhuma causa precede ou está acima dele.[7] Nossa ação é porque Deus nos move a agir. Deus é a causa primeira; os homens são a causa secundária, que resulta num ato ou evento neste mundo. Por isso podemos dizer que “todas as causas fora de Deus e sua causação não são meramente parciais mas absolutamente condicionadas por ele…[8] Deus é o iniciador, ou a causa última de toda ação que nós fazemos.
“A criatura é também uma causa. Ele é pressuposta absolutamente por Deus. Sem Deus ela não poderia nem existir nem ser uma causa. Como uma causa secundária a criatura é tanto condicionada por outras causas assim como é condicionadora de outras coisas. Ela é ambas, causa causans e causa causata, uma causa que causa e uma causa que é causada. [9]
Nessa matéria de primeira causa e causas secundárias têm que ser resguardas a soberania absoluta de Deus nos seus decretos e a nossa liberdade condicionada à nossa própria natureza.
Contudo, é preciso lembrar que o modo como essa relação entre a causa primária e as causas secundárias se processa é ainda um mistério para nós. Nos a chamamos concursus, mas não sabemos com muita propriedade o modus operandi de Deus. Não temos como explicar o âmago dessa relação, mas ela é um fato que não podemos negar.
Os Objetos do Concursus Divino
O CONCURSUS NA CRIAÇÃO INANIMADA
Há aqueles que pensam de uma porção de coisas na criação como sendo acontecimentos simplesmente “naturais”. Por “naturais” eles entendem meramente uma ação da natureza que é regida por leis e estas leis funcionam por si próprias. Daí a afirmação comum dos programas de caráter científico que falam da Mãe Natureza, como ela se ela pudesse causar a si mesma.
Entretanto, quando examinamos a revelação divina, vamos perceber que mesmo nos eventos chamados “naturais” há a participação divina e é Deus quem causa o acontecimento delas. A ação causal sempre é de Deus. O salmista fala dos fenômenos da natureza como sendo o resultado de uma causa. Ele diz de “fogo e saraiva, neve e vapor, e ventos procelosos que lhe executam a palavra” (Sl 148.8). Esses elementos entram em ação ao mando ou ao estímulo próprio segundo a natureza deles, para executarem os propósitos de Deus.
A natureza não possui funcionamento independente, como se Deus as governasse por leis e a deixasse funcionando indefinidamente sem qualquer contato com ela. Deus é um ser imanente, que está envolvido com a sua criação porque esta depende dele para funcionar. Do contrário, tudo seria desordenado. A natureza não sabe o tempo de manifestar-se. A natureza não é sábia para cumprir propósitos divinos. Ela precisa ser estimulada pelo Altíssimo e, assim, cumprir os seus decretos. Ela não somente é inanimada, mas dependente da ação concorrente de Deus para funcionar como deve.
De uma maneira muito sábia e poética, o salmista afirma que
Sl 135.6-7 – “tudo quanto aprouve ao Senhor, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos. Faz subir as nuvens dos confins da terra, faz os relâmpagos para a chuva, faz sair o vento dos seus reservatórios.”
Note primeiro que as coisas todas na natureza começam porque aprazem ao Senhor. Ele movimenta todas as coisas para que cumpram e sirvam aos fins destinados. Todavia, é importante observar que as situações e os despertamentos e os estímulos procedem do Senhor. Ele é quem transporta as nuvens, provoca os relâmpagos na hora certa e faz sair os ventos. Deus participa nas manifestações da natureza. Esta não é autônoma ou simplesmente governada por leis naturais.
A vegetação não cresce ao seu bel prazer, como se fosse apenas regida por leis fixas. Deus tem participação no nascimento e no desenvolvimento delas. Observe com atenção o que o salmista diz:
Sl 104.14-187 – “Fazes crescer a relva para os animais, e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão; o vinho, que alegra o coração do homem, o azeite que lhe dá brilho ao rosto, e o pão que lhe sustém as forças. Avigoram-se as árvores do Senhor, e os cedros do Líbano que ele plantou, em que as aves fazem seus ninhos; quanto à cegonha, a sua casa é nos ciprestes.”
Estes versos são lindíssimos, mas muitos cientistas sem formação cristã atribuem as belezas aqui descritas à Mãe Natureza. A natureza é divinizada e eles tiram Deus da jogada e o põem escanteado. No entanto, os cristãos crêem que Deus usa as leis naturais, a potencialidade das sementes plantadas pelo vento, o pólen levado pela brisa, mas eles também crêem, porque a Escritura afirma inequivocamente, que há uma combinação das leis da natureza previamente estabelecidas por Deus e a ação de Deus cooperando para que todas as coisas potencializadas sejam levadas a efeito.
Observe que os versos acima falam que Deus é quem faz crescer a relva baixinha. A semente, por si mesma, embora possua todas as condições de germinar, depende de uma ação iniciadora de Deus. Semelhantemente, as grandes árvores possuem a mesma dependência para nascer e crescer. Veja que o texto diz dos cedros que o Senhor plantou. Por isso é dito que as árvores são do Senhor. Deus concorre no nascimento e no crescimento da criação viva, mas inanimada, que é útil para a manutenção dos animais e dos seres humanos e das quais todos eles tiram o seu alimento.
O CONCURSUS NO SUSTENTO DOS ANIMAIS
A ação concursiva (ou cooperadora) de Deus na vida dos animais é a mesma da ação dele nas plantas. A única diferença quem faz é a natureza dos objetos da cooperação divina. O modo de Deus agir nas plantas é diferente da ação nos seres animados. Embora Deus trabalhe com as leis que ele estabeleceu para os animais, essas leis não funcionam independentemente. Deus coopera para que os animais sejam nutridos e preservados. Observe a maneira clara que o salmista usa para descrever a obra cooperadora de Deus.
Sl 104.27-30 – “Todos esperam em ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás, eles o recolhem; se abres a mão, eles se fartam de bens. Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem, e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados, e assim renovas a face da terra.”
Toda a natureza animal está na absoluta dependência da obra cooperadora Deus com as leis da natureza e da sobrevivência que conhecemos. Primeiramente, o texto diz que todos animais esperam pelas providências divinas, isto é, que o Senhor os alimente. Eles recolhem o que o Senhor lhes dá e ficam cheios com a abundância de alimento vindo da parte do Senhor. Observe que o alimento vem das árvores e de outros animais, mas é dito que o Senhor lhes alimenta. Há uma estreita cooperação daquilo que a natureza provê (com expressão da criação de Deus) e daquilo que o Senhor faz, energizando tudo para que todas as coisas funcionem a contento. Porque se o Senhor não estiver ativo na natureza, os animais padecem e todos vêm a expirar. Quando os animais morrem, Deus não permite que as espécies se findem, mas o seu Espírito, que opera neste mundo, renova a face da terra com a existência de outros animais que ele traz à vida, sempre em cooperação com as leis de preservação que ele próprio estabeleceu.
Ensinando aos seus discípulos, Jesus instou-os a olharem “as aves do céu, que não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros”. Elas dependem de alguém que lhes alimente. É verdade que os passarinhos se alimentam das frutinhas das árvores, das migalhas de pão encontradas em nossas casas, das sementinhas espalhadas pelo chão, e assim por diante. No entanto, Jesus disse: “Contudo vosso Pai celeste as sustenta”. Deus está ativo neste mundo agindo de modo concursivo, cooperando com as leis que ele estabeleceu, para o sustento dos indefesos animaizinhos.
O CONCURSUS NOS EVENTOS FORTUITOS
Vivemos num tempo em que as pessoas procuram conhecer os eventos através do costume de se lançar sorte ou decidir através do uso de moedas no “cara ou coroa”, como se os eventos fossem decididos fortuitamente, sem qualquer relação causal com Deus.
Contudo, não é assim que as Escrituras ensinam a respeito dos eventos fortuitos. Não há acaso, sorte ou casualidade nos eventos acontecidos em nossa vida pessoal ou nos eventos do universo. Não há acasos para Deus. Todas as coisas estão sob o controle direto e concursivo de Deus. Ele não somente decreta os eventos mas também participa na ocorrência deles. Por isso dizemos que Deus coopera em todos os eventos. A Escritura afirma que “a sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão” (Pv 16.33). Podemos usar artifícios como o mencionado acima, mas a palavra final é de Deus. Não há como escapar desse fato. Deus não deixa a história acontecer por si mesma. Os eventos não são isolados ou independentes de Deus.
É verdade que o escritor de Eclesiastes diz: “Vi ainda debaixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória, nem tão pouco dos sábios o pão, nem ainda dos prudentes a riqueza, nem dos entendidos o favor; porém tudo depende do tempo e do acaso” (Ec 9.11). Todavia, devemos entender corretamente com Michael Eaton que, “nos lábios de um israelita a palavra “acaso” significa aquilo que não é esperado, não a idéia de aleatório ou casual.” [10] O acaso para o israelita tem a ver com as cousas que não são previsíveis aos olhos dos homens, com as cousas que não podemos controlar. Todavia, isso não significa que essas coisas sejam produto de forças independentes de um plano e de uma ação divina.
O CONCURSUS NOS DETALHES DOS NOSSOS DIAS
Escrevendo sobre as situações mais variadas pelas quais passou, Paulo disse aos crentes de Filipos: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.” (Fp 4.19). Mesmo sabendo que cada uma de nossas necessidades pode ser suprida por meios naturais, Paulo afirma que esse suprimento é vindo de Deus. Há uma cooperação de Deus em todos os atos que acontecem. Do contrário nenhum deles aconteceria porque nada se move sem a ação estimulante e energética de Deus, mesmo nas coisas mínimas, nos detalhes de nossa vida. Davi afirma com todas forças de sua fé que todos os detalhes de nossos dias estão nas mãos de Deus. Nada do que acontece na totalidade de nossos dias e na particularidade de cada um deles está fora dos planos e atuações de Deus. Davi diz que “no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Sl 139.16). Deus concorre em todos os eventos, mesmo os menores.
Por falar nas coisas comuns e triviais, das quais dependemos para a nossa subsistência, a participação divina nelas não é excluída. Sabemos que o nosso sustento diário de pão depende do nosso trabalho, do esforço que fazemos para suprir nossas famílias, mas Jesus nos ensinou a orar sem cessar: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6.11). Isso significa que Deus coopera para o nosso sustento com as leis que ele estabeleceu, que são as causas naturais. Ele está envolvido em todo processo, dando energia a tudo o que se relaciona com a nossa alimentação, que resulta no pão em nossa mesa diariamente.
Ensinando aos pagãos de Atenas sobre o Deus verdadeiro, Paulo disse que todas as coisas que acontecem neste mundo estão atreladas à vontade e atuação de Deus. Pois, afirma Paulo, em Deus vivemos, existimos e nos movemos” (At 17.28). Cada movimento nosso ou cada passo que damos está conectado com a ação divina em nós. Somos criaturas dependentes de Deus e não podemos fazer um só movimento sem que sejamos energizados por ele. Por essa razão, Jeremias reconhece que o “Senhor dirige os nossos passos” (Jr 10.23).
O CONCURSUS NAS VITÓRIAS E NAS DERROTAS
Deus tem participação nas vitórias e nas derrotas, nos sucessos e nos insucessos dos homens, seja nas grandes ou nas pequenas coisas. Deus não foge da responsabilidade de um coisa ou outra. Ele está presente e ativo em todos os nossos desafios. O Salmista diz:
Sl 75.6-7 – “Porque não é do oriente, não é do ocidente, nem do deserto que vem o auxílio. Deus é o juiz; a um abate e a outro exalta.”
As nossas vitórias ou derrotas têm a ver com a nossa força ou a nossa fraqueza; nosso esforço ou nossa negligência. É sempre assim que enxergamos, mas não exatamente o que acontece. Muitos são fortes e não vencem; outros que são fracos vencem; muitos se esforçam e não conseguem; muitos que não se esforçam conseguem. “Não sempre é dos fortes a vitória, nem dos que correm melhor, nem ainda de todos os fiéis e sinceros”[11], porque todos dependemos de um outro fator concorrente que é a atuação de Deus. O texto acima mostra que o auxílio final não vem de lugar algum. Deus é o que está acima de todas as circunstâncias. A uns ele abate (geralmente os soberbos, pois a esses ele resiste, cf. Lc 1.52) e a outros exalta. Todavia, nem sempre os justos são exaltados. A medida do sucesso não está nas coisas que fazemos, nem a medida do fracasso nas nossas falhas. Há um outro fator concorrente que é o misterioso modo como Deus age em nossas vitórias e em nossas derrotas. A isso chamamos concursus. Contudo, cremos que, ganhando ou perdendo, tendo sucesso ou insucesso, devemos em última instância a Deus, e cremos também que seja qual for o resultado dos atos em nossa vida, todas as coisas concorrem para o nosso bem, isto é, daqueles de nós que amamos a Deus e somos chamados segundo o seu propósito (Rm 8.28).
Para nós que somos cristãos isso não é muito difícil de entender, porque se ganhamos dizemos que é a vontade de Deus, se perdemos dizemos a mesma coisa, porque quer ganhando quer perdendo temos certeza de que somos do Senhor. Pelo menos foi isto o que Paulo nos ensinou.
O CONCURSUS NAS DECISÕES DOS GOVERNANTES
Mais detalhes deste assunto serão estudados no final deste capítulo quando analisarmos os atos bons e maus dos homens bons e maus. Por agora, vejamos apenas alguns exemplos que introduzem o assunto para ser desenvolvido posteriormente.
Pv 16.1, 9 – “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor… O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos.”
Os dois versos acima mostram que os homens podem fazer planos, podem traçar os seus caminhos, mas nada dos seus planos é realizado sem a anuência concorrente de Deus. Em última análise, a decisão é de Deus em todos os acontecimentos da história pessoal dos seres humanos e, de um modo especialmente ilustrado na vida dos governantes. Deus decreta de antemão os acontecimentos e participa nos eventos que decreta para que nada seja contrário aos seus planos, porque estes não podem ser frustrados. Veja como Deus participa nas decisões dos governantes:
Pv 21.1 – “Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do Senhor; este, segundo o seu querer, o inclina.”
Se o Senhor dirige os passos e as decisões dos homens comuns, como podemos ignorar que ele dirige as decisões dos monarcas. O rei faz as suas decisões seguindo as inclinações do seu coração, mas as suas decisões não são independentes dos planos de Deus e, muito menos, da ação concorrente de Deus. Este texto clássico de Provérbios mostra que o rei tem o seu coração influenciado e dirigido pela vontade do Senhor. Ele pode ter as suas decisões boas ou más, mas por detrás das suas decisões há um concursus divino que dirige o rei para onde cumpre os planos eternos de Deus. É importante observar que o rei não faz nada contrário à sua vontade, mas faz exatamente a vontade do seu coração. Como ele próprio não possui controle do seu coração, senão Deus, a vontade do rei vai fazer as coisas que são próprias da sua natureza mais interior, que é o coração. Sobre essa natureza mais interior do homem é que o Senhor tem influência. Como conduziria Deus a história do mundo se não tivesse esse poder sobre os corações dos monarcas? É esse poder de inclinar os corações dos reis para o cumprimento dos seus propósitos que dá a Deus o controle da história determinada de antemão. Deus faz com que a sua vontade seja passada ou comunicada ao coração do rei, sem fazer com que o rei faça algo contra a sua vontade. Deus predispõe o coração do rei a fazer a vontade divina.
Foi exatamente isso que aconteceu com o rei da Assíria que, tendo o coração mau, foi inclinado em seu mais interior a fazer uma coisa boa. Veja como Esdras registra esse incidente:
Ed 6.22 – “Celebraram a festa dos pães asmos por sete dias com regozijo, porque o Senhor os tinha alegrado, mudando o coração do rei da Assíria a favor deles, para lhes fortalecer as mãos na obra da casa de Deus, o Deus de Israel.”
Deus atua numa esfera do homem a qual ele não tem acesso. O homem não pode mudar as disposições do seu coração. Ele faz somente o que o seu coração dita. É necessária uma atuação de fora para que as inclinações mudem. Foi esse o papel de Deus na vida do rei da Assíria. O ato de permitir a festa espiritual de Israel foi do rei da Assíria, mas para que isso acontecesse, ele teve a concorrência divina.
Da mesma forma, Ciro o rei dualista da Pérsia, teve o seu interior despertado por Deus para beneficiar o povo que estava voltando do cativeiro (ver Ed 1.1). As decisões todas dos governantes não são autônomas ou independentes de uma obra de cooperação de Deus. Se Deus não cooperasse nas decisões dos reis, nunca os decretos de Deus seriam cumpridos. Não nenhuma obra automática dos homens, não há o destino pagão impessoal. Deus concorre em todas as decisões dos monarcas para que os seus planos sejam rigorosamente cumpridos.
Se Deus tem co-participação nas decisões dos monarcas, segue-se que ele procede da mesma forma nas decisões que afetam as nações.
O CONCURSUS NOS EVENTOS CONTINGENTES
Todos os eventos contingentes também estão debaixo da providência divina.
Os eventos contingentes são aqueles que acontecem sem que os homens possam ser considerados realmente culpados por eles, porque eles praticaram atos sem terem a intenção de fazê-los. Uma pessoa que está trabalhando numa derrubada de mata pode matar outra pessoa acidentalmente, sem que tenha qualquer intenção de matá-la. Essa é uma situação que pode acontecer em muitos lugares. Todavia, ainda assim, nós os que cremos na providência divina, mesmo lamentando, acabamos atribuindo-a a uma providência divina. Nada acontece sem que a vontade do Senhor esteja sendo feita. Além disso, Deus considera seu também um ato que foi praticado acidentalmente. A Escritura apresenta o exemplo de um evento contingente
Ex 21.12-13 – “Quem ferir a outro de modo que este morra, também será morto. Porém se não lhe armou ciladas, mas Deus lhe permitiu caísse em suas mãos, então te designarei um lugar para onde ele fugirá.”
Já nos tempos do Antigo Testamento Deus proveu uma saída para tal caso. Era a cidade de refúgio. Para a nossa instrução, o texto afirma o ato de duas pessoas: o do homem que feriu ao outro causando-lhe a morte, e a ação concursiva de Deus que fez com que o outro caísse em suas mãos. Deus está presente concorrendo nos eventos contingentes. Não podemos admitir Deus fora desses eventos porque isso seria injustiça a Deus que reivindica sua própria responsabilidade nesses eventos contingentes. Não tentemos eliminar Deus desses eventos por que ele próprio assume a sua participação neles.
Há outros exemplos de eventos contingentes, sobre os quais os seres humanos não possuem controle. Um deles é o do servo de Abraão que estava na Mesopotâmia procurando uma esposa para Isaque, a mando de Abraão. Chegando num determinado local, junto a um poço, ele viu que várias moças estavam chegando. Então, aflito, sem saber o que fazer, orou a Deus:
Gn 24.12-14 – “Ó Senhor, Deus de meu senhor Abraão, rogo-te que me acudas hoje e uses de bondade para com o meu senhor Abraão! Eis que estou ao pé da fonte de água, e as filhas dos homens desta cidade saem para tirar água; dá-me, pois, que a moça a quem eu disser: Inclina o cântaro para que eu beba; e ela me responder: Bebe, e darei ainda de beber aos teus camelos, seja a que designaste para o teu servo Isaque; e nisso verei que usaste de bondade para com meu senhor.”
O servo de Abraão não possuía nenhum controle sobre a situação na escolha da esposa de Isaque. Ele nem sabia se a esposa estaria entre aquelas moças. Apenas pediu uma confirmação. Ele a teve de maneira clara, exatamente do modo como pediu. A jovem Rebeca falou exatamente do modo como o servo havia sugerido, e o texto que se segue demonstra a ação de Deus na vida de Rebeca e na condução do servo até o lugar certo para achar a esposa do filho do seu senhor (v. 26-27, 48). O concursus está evidente no fato de Rebeca falar voluntariamente a frase sugerida pelo servo e no fato de Deus ser glorificado pelo servo porque tudo foi conduzido pelo Senhor (v.39-40). Deus estava na frente, preparando o caminho para o servo e dispondo o coração de Rebeca para que ela falasse o que falou ao servo e para que o seguisse de volta para a casa do seu senhor (v.50-51). E, assim, o Senhor Deus, em cooperação com a atitude de Rebeca, agiu com bondade para com o senhor, assim como pedira o servo (v.12).
O CONCURSUS DE DEUS NO ESPÍRITO HUMANO
Deus tem domínio sobre todos os eventos nos quais os homens são ativos justamente porque ele tem domínio direto sobre os espíritos deles, mas de um modo que as ações deles são livres, isto é, as ações deles são feitas sem qualquer compulsão externa. Os seres humanos não agem independentemente da ação de Deus na vida deles. Deus tem poder para penetrar o interior deles e de lhes mudar as disposições interiores de tal forma que eles passam a agir de acordo com essas disposições que são deles e, assim, os planos de Deus são realizados. Se Deus não agisse no interior deles, inclinando-lhes as disposições para cumprirem os planos previamente traçados por Deus, ninguém poderia garantir que os seus planos seriam cumpridos. Nem o próprio Deus poderia predizer coisa alguma.
A Escritura mostra alguns exemplos onde Deus opera no interior dos homens de uma forma imediata, direta, sem o uso de quaisquer instrumentos ou meios. Deus opera pela sua onipotência, que não é separada da sua onisciência ou onipresença.
Nesse caso, Deus não opera com qualquer força física, mas unicamente por persuasão moral, mudando as disposições mais íntimas das pessoas, mas sem que lhes tire qualquer responsabilidade. Todas as cousas que essas pessoas vierem a fazer, elas as farão de acordo com as próprias disposições dominantes do seu ser interior. Essa ação interior de Deus na vida dos seres humanos é motivada por motivos éticos antes do que por força física. Quando Deus age sobre o ser interior dos homens, ele nunca os força a fazer nada do que não querem fazer. A ação divina afeta uma esfera que está por detrás da faculdade humana da vontade, de modo que a ação deles sempre será voluntária, isto é, nunca eles agirão contrariamente à sua vontade. Nunca a ação divina destroi a responsabilidade humana, porque a sua ação atinge uma esfera que subjaz a inteligência, aos sentimentos e as volições humanas.
O Espírito divino age no espírito humano de uma forma altamente misteriosa e direta. É assim de um ser pessoal sobre outro, devidamente considerando que o primeiro seja muito superior em natureza ao segundo. Não é a ação de um ser sobre um outro seu igual. Eles são iguais apenas porque são pessoais, mas muito diferente em sua natureza. Todavia, é perfeitamente possível que o maior interfira no menor, sem anular o aspecto da personalidade deste último. Isso é o que chamamos uma ação livre, sem interferência externa de alguém. Quando Deus age, ele age numa esfera onde o ser humano não tem acesso, que é o próprio espírito humano. O ser humano obedece, portanto, aos impulsos de sua própria natureza.
AÇÃO MEDIATA DE DEUS SOBRE O ESPÍRITO HUMANO
Deus age na vida dos seres humanos através da agência de outros seres humanos, a fim de construir o caráter deles e de elevar o seu comportamento. Os profetas foram os instrumentos de Deus através dos quais Deus agiu nos espíritos dos homens.
Obviamente, esse tipo de influência indireta, opera conforme as leis da natureza do objeto influenciado, agindo de fora, através da linguagem ou outro meio que atinja os sentidos humanos. Todavia, nem sempre esse tipo de influência é eficaz. Muitas vezes os homens se rebelaram contra esse modus operandi de Deus e desobedeceram as suas palavras.
A ação de uma pessoa sobre outra, de forma indireta, pode ser obstada de tal forma que ela não ocorra. O espírito humano pode tornar-se impermeável quando a influência vem de fora. Isto se dá freqüentemente no caso de seres humanos quererem influenciar uns aos outros. Acontece também quando Deus quer influenciar através da palavra da pregação profética. O homem ser torna impermeável ou empedernido diante da mensagem. É nesse sentido que ele resiste ao Espírito Santo, como mencionou Estevão em Atos 7.51 (cf. Zc 7.12). Houve um bloqueio do espírito humano à mensagem, porque a influência vinha de fora. Por essa razão, eles resistiram a palavra que vinha do Espírito.
AÇÃO IMEDIATA DE DEUS SOBRE O ESPÍRITO HUMANO
Os seres humanos só podem exercer uma influência indireta sobre os seus pares, e isto é fácil de perceber. Contudo, Deus não age somente indiretamente, mas também diretamente, sem o uso de meios.
Todavia, a ação imediata de Deus não vem de fora, através do uso de palavras, mas é uma ação no interior do homem. Deus age numa esfera mais profunda do ser humano (que é o seu coração) de forma que ele não pode e nem percebe quando Deus age, senão quando ele começa a refletir externamente (em pensamentos, palavras e atos), a influência já acontecida.
O Espírito Santo age no ser mais interior dos seres humanos mudando as disposições contrárias ou retirando as indisposições, quando isto lhe apraz. Sua ação se dá numa esfera onde o homem não tem acesso, que é o seu coração.
A ação de Deus independe da permissão humana
Deus não precisa pedir licença ao homem para agir dentro dele. Essa é uma obra divina que não deixa o homem ser autônomo nem independente. Infelizmente, mesmo em meios evangélicos, há aqueles que insistem no fato de o homem deixar Deus agir em sua vida, nas mais variadas áreas. Deus tem que ter a licença humana para poder trabalhar na sua criatura. Essa teologia fica expressa em vários hinos e cânticos que nossas igrejas cantam. Essas igrejas são educadas na fé pelas músicas que cantam e, muitas vezes, as que prevalecem são as que ensinam coisas erradas. E uma das coisas erradas é a de que Deus age com a condição de nós o deixarmos agir.
Todavia, não é esse o ensino das Escrituras a respeito da ação divina no espírito humano. Há uma ação imediata do Espírito de Deus dentro do coração (ou espírito) humano. Deus age numa esfera em que o homem não tem domínio, que é o seu próprio coração. Deus inclina o coração das pessoas para o que é santo e, dessa forma, a pessoa pode agir fazendo o que é agradável a Deus. Quando você pratica um ato santo é porque os impulsos para esse ato vêm de dentro do coração, onde Deus agiu. Se Deus não agir no seu interior dispondo-o para o que é santo, você nunca praticará o que é santo. Por essa razão, é que Paulo diz que Deus, agindo em nosso ser interior, “opera em nós tanto o querer como o realizar” (Fp 2.13).
A ação de Deus independe da comunhão do homem com ele
Além do que vimos acima, temos que entender que a ação divina não é somente nos crentes, mas também nos incrédulos. Não é necessário o homem ser crente para Deus atuar nele. Deus atua independente da comunhão do homem com ele. Isso é patente naqueles a quem ele vai regenerar. A regeneração é um ato instantâneo de Deus onde ele trabalha no mais profundo do ser humano implantando o princípio vital. Essa obra Deus faz quando o homem está morto nos seus delitos e pecados. É uma ação imediata de Deus. Foi assim que Deus fez com Lídia, a vendedora de púrpura, em Atos 16. Ela era uma mulher sem qualquer entendimento do evangelho, mas o Senhor abriu o coração dela a fim de que ela pudesse entender a pregação de Deus. Essa foi uma obra imediata de Deus no ser mais interior de Lídia. Assim ele faz com todos os que ele regenera.
Deus também faz uma obra direta no coração dos que estão mortos quando dispõe o coração deles para realizar atos que cumprem os desígnios divinos. É o caso de sua ação direta no espírito de Ciro, rei da Pérsia, e de todos aqueles a quem Deus inclina o coração para executarem os seus propósitos.
CARACTERÍSTICAS DO CONCURSUS divino
O CONCURSUS DE DEUS É MEDIATO E IMEDIATO
Como já estudamos anteriormente, para governar o mundo Deus emprega todas as classes de meios para a realização de seus propósitos. Quando Deus usa os meios, ele não fica passivo esperando para ver o que acontece. Ele concorre para que a ação seja feita eficazmente.
A concorrência diz respeito ao modus operandi de Deus e nele Deus usa meios para executar tudo o que planejou. Alguns citam o cinzel como exemplo de um meio que fica entre o escultor e a pedra que está sendo trabalhada. Esse exemplo não ajuda a entender porque, nesse caso, somente o escultor trabalha. O cinzel é inconsciente e não faz nada livremente. Somente o escultor. Na relação entre Deus e o homem, a situação é diferente. Deus energiza as criaturas vivas por seu próprio poder e, então, elas agem livre e conscientemente. Todavia, se o concursus de Deus é relacionado com um evento na natureza, então o emprego de meios é mais fácil de ser entendido, porque não há a necessidade da participação consciente e livre de um agente da natureza.
Quando Deus destruiu as cidades de Sodoma e Gomorra com fogo, pudemos ver um ato da ação providencial de Deus em que ele empregou meios, o fogo e o enxofre. Mas ao mesmo tempo, ali está a sua concorrência imediata porque ele usou um fogo que não existia, mas que ele trouxe à existência imediatamente, pelo qual ele faz com que caísse e destruísse aquela terra.
O CONCURSUS DE DEUS NOS ATOS DOS HOMENS É PRÉVIO E DETERMINANTE
A expressão “prévio” aqui não dever ser entendida no sentido temporal, mas lógico. Não existe nenhuma criatura que pratique uma ação que parta exclusivamente de si mesma. Em todos os casos o impulso para a ação e para o movimento procede de Deus. Tem que haver uma influência da energia divina antes da criatura atuar. Deus faz com que tudo coopere na natureza e que se mova em direção a um fim predeterminado. Desta maneira Deus também impulsiona e capacita todas as suas criaturas racionais, que são as causas secundárias, para que atuem. Deus não somente as dota com energia, mas dá-lhes também vigor para fazerem ações específicas. Deus faz tudo em todos (1 Co 12.6), e opera todas as cousas segundo o conselho da sua vontade (Ef 1.11). Deus deu vigor a Israel para conseguir riquezas (Dt 8.18) e opera nos crentes tanto o querer como o fazer, segundo a sua boa vontade (Fp 2.13).
É bom lembrar que os arminianos também admitem que a criatura não pode atuar sem o influxo do poder divino, mas sustentam que esse influxo não é tão específico ao ponto de determinar o caráter da ação em sentido algum.
O CONCURSUS ENTRE DEUS E O HOMEM É SIMULTÂNEO
Não há um só momento em que a criatura opere absolutamente sozinha, independentemente da vontade e do poder concorrente de Deus. A atividade de Deus sempre acompanha, sustenta e conduz a atividade do homem. Atos 17.28 diz: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos.” – Toda atividade nossa está, de alguma forma, associada a uma ação assistida por Deus para a consecução de um plano divino. Todos os nossos movimentos estão amarrados à sua vontade soberana e sua ação que penetram nossas ações. A atividade de Deus acompanha a dos homens em todas as suas direções, mas nunca o homem fica despojado de sua responsabilidade. Os dois, Deus e homem, trabalham simultaneamente, embora o homem nem sempre percebe que as coisas funcionam assim.
Nesse concursus simultâneo, uma ação é sempre o resultado da combinação do ato dos homens e da participação divina. Mas o homem é sempre responsável por sua ação, seja ela boa ou má, e Deus é a causa última dela, embora ele seja sempre o primeiro a disponibilizar o homem para a execução daquilo que ele faz sem qualquer tipo de coação externa. Essa combinação de ação é também chamado em teologia de compatibilismo.
O Compatibilismo DO CONCURSUS
Não obstante a dificuldade patente que existe de compatibilizar a soberania de Deus e a liberdade humana, podemos ter certeza de que as duas coisas coexistem e podem ser compatibilizadas. Elas não são mutuamente excludentes. Mesmo que não expliquemos todas as relações existentes entre essas duas verdades, elas são claras na Escritura. Todavia, afim de clarearmos um pouco essa difícil matéria, vamos a um procedimento que R. C. Sproul usou no tratamento desse assunto.
Segundo esse grande escritor reformado, uma das maiores dificuldades da teologia cristã é a solução do mistério que existe entre a obra soberana providencial de Deus e aquilo que realmente a criatura faz livremente. Antes de entrar no tratamento dessa relação, temos que distinguir dois termos muito importantes:mistério e contradição.[12]
Uma contradição é entendida pela simples aplicação do uso das regras básicas da lógica. Algo que existe não pode ser ao mesmo tempo não-existente. Isso é uma contradição. Quando afirmamos que Deus é soberano e que o homem é livre, não estamos tratando de uma contradição. Ambas as coisas podem coexistir perfeitamente. Todavia, se eu afirmo que Deus é soberano e o homem é um ser autônomo, então estou afirmando uma contradição. Estas duas coisas são excludentes. Se Deus é soberano, nada escapa ao seu controle e os seres humanos não poder ser autônomos. Se, entretanto, os homens são autônomos, a soberania de Deus é deixada de lado. A existência de um anula ou outro.
Pode-se conceber a idéia de um Deus absolutamente soberano. Os calvinistas crêem assim. Pode-se conceber a idéia de seres humanos como autônomos. Os humanistas em geral crêem assim. Todavia é impossível concebê-los como coexistindo simultaneamente. É impossível conceber o relacionamento da providência soberana de Deus com a autonomia humana. Ou aceitamos uma ou outra. Quem afirma uma nega o outra. É uma impossibilidade lógica aceitar ambas.
A razão pela qual existe uma impossibilidade lógica entre a soberania absoluta e a liberdade de autonomia é porque este último termo significa liberdade absoluta. Soberania absoluta e liberdade absoluta podem existir num mesmo ser. Deus pode ser tanto soberano como autônomo, mas isto não pode ser dito das criaturas, porque não pode haver dois soberanos, nem dois autônomos.
Para ser honesto, a liberdade absoluta não existe nem para Deus, porque ele não pode fazer nada contrário à sua natureza. Contudo, ele é livre no sentido de fazer qualquer coisa sem ter que dar satisfação a quem quer que seja. Ele não está sob a autoridade de ninguém. Nesse sentido ele tem liberdade de autonomia, mas não liberdade absoluta. Apenas age de acordo com a sua própria natureza.
Os seres humanos possuem liberdade, mas não a liberdade de autonomia. É uma liberdade limitada às suas condições de finitude, que são agravadas pela presença do pecado na raça humana. Não podemos permitir que a liberdade do homem diminua a soberania divina. Entretanto, é perfeitamente correto aceitar que a soberania divina limite a liberdade humana. É dessa liberdade dentro de limites que vamos tratar ainda neste capítulo. Ela será chamada de liberdade natural ou liberdade de agência.
A palavra mistério deve ser distinta da idéia de contradição. Não existe contradição entre a soberania absoluta de Deus e a liberdade de agência dos homens. Elas podem coexistir pacificamente porque elas não são excludentes. Todavia, não podemos penetrar todos os meandros dessa coexistência. Como Deus age soberanamente ao mesmo tempo em que o homem faz o seu trabalho realmente, é difícil de entender. “Um mistério pode ser definido como alguma coisa que é verdadeira que não podemos entender.” [13] A soberania absoluta de Deus é verdadeira. A liberdade do homem (da forma como vamos apresentá-la) também é verdadeira. Contudo, não podemos compreender a maneira como essas duas verdades podem ser relacionadas. Permanece um mistério o fato de que, ao mesmo tempo, num ato praticado, Deus se manifesta soberano e o homem livre e responsável. Todavia, é possível a coexistência dessas duas verdades. Os que a defendem são chamados de compatibilistas.
O COMPATIBILISMO DEFINIDO
A idéia da coexistência da soberania divina e da liberdade responsável do seres humanos é regularmente chamada de compatibilismo.[14] Essas duas grandes verdades não se excluem. A Bíblia as ensina e delas não podemos escapar, mesmo que não as entendamos completamente:
A VERDADE DE QUE DEUS É SOBERANO
A soberania de Deus atinge todos os níveis e todas as suas criaturas. Ela é extremamente abrangente nos ensinos da Escritura. Portanto, não é de se estranhar que encontremos nas páginas da Escritura Deus participando claramente nos atos maus dos homens e relacionado com coisas que nunca imaginaríamos que um Deus como o nosso pudesse estar.
Deus faz vir desgraças sobre as famílias. Assim entendeu com razão Noemi, pois foi uma mulher que sofreu muito da parte do Senhor (Rt 1.13, 20); o profeta Amós faz uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma expressão da sua fé: “Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Am 3.6); Mesmo que não seja com alegria no seu coração Deus entristece os filhos dos homens (Lm 3.33); tudo o que acontece no mundo, seja mal ou bem, procede de Deus (Lm 3.37-38); o mesmo Jeremias entendeu muito claramente que os caminhos dos homens, sejam retos ou tortuosos, não são governados nem determinados, nem dirigidos pelos próprios homens (Jr 10.23); um salmista afirmou categoricamente que Deus mudou o coração dos egípcios para que eles odiassem o povo de Israel (Sl 105.25). Deus faz todas as coisas, mesmo as mais espantosas como o mal (Is 45.6-7), afirmou Isaías. Ele endurece o coração das pessoas conforme lhe apraz (Rm 9.18) e pode incliná-lo para o mal, porque o coração das pessoas está nas suas mãos (Pv 21.1). É por isso que Paulo diz que Deus mandou a operação do erro para que os homens não cressem na verdade de Deus (2 Ts 2.11).
Esse é o Deus das Escrituras Sagradas, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não é o deus da imaginação das pessoas, nem aquele que é projeção dos próprios homens. Ele possui o controle sobre todas as coisas, porque ele reina sobre o seu universo, faz sempre e inalteravelmente a sua vontade.
Essa é a primeira grande verdade e uma das mais importantes pressuposições da Escritura — Deus é soberano.
A VERDADE DE QUE O HOMEM É UM AGENTE LIVRE.
A segunda grande verdade é que a soberania de Deus nunca exclui ou minimiza a liberdade responsável dos seres racionais. Estas duas verdades andam juntas e nem sempre podemos abarcar a totalidade desta verdade, e também porque pensamos que as duas coisas são excludentes. Nos textos citados logo acima os seres humanos têm participação ativa. Eles não são excluídos porque Deus é soberano.
Definição de Liberdade de agência
A liberdade da qual vamos tratar aqui não inclui a idéia comum de escolha contrária, que é comum nos círculos humanistas, semi-pelagianos e arminianos, nem a idéia de uma liberdade de autonomia.
A liberdade dos seres humanos que a fé reformada ensina não é fictícia ou ilusória. Ela é real e verdadeira. Ela diz respeito aos atos voluntários que os seres humanos praticam. A liberdade da qual falamos tem a ver com a capacidade que os seres humanos possuem de fazer qualquer coisa que quiserem, de fazer o que lhes agrada, de fazer as coisas pelas quais eles têm predileção. Todavia, nunca eles haverão de fazer nada que seja contrário à sua natureza. Berkhof chama essa liberdade de livre agência, que é a capacidade de fazer qualquer coisa “de acordo com as disposições dominantes da natureza”.[15]
Eles são livres para fazerem as coisas conforme as disposições morais e espirituais dos seus corações. Eles agem obedecendo os seus impulsos interiores. É importante observar que esses impulsos interiores são os impulsos que os levam a participar dos atos que foram iniciados decretivamente por Deus.
Ilustração de Liberdade de agência
Sobre a relação entre a soberania de Deus e a liberdade humana vamos falar quando tratarmos da Primeira Causa e das causas secundárias, mas daremos apenas um exemplo como ilustração da ação livres e voluntárias dos homens.
Tome o texto de Atos 4.23-28 e leia-o cuidadosamente. Então, você vai perceber que todas as pessoas mencionadas no verso 27 – Herodes, Pilatos, gentios e povos de Israel fizeram exatamente o que queriam fazer. Alguns detalhes da traição de Cristo foram até planejados cuidadosamente, como é o caso da ação dos fariseus e membros do Sinédrio. Nenhum deles fez coisa alguma contrária à sua natureza. Eles fizeram tudo o que estava de acordo com as disposições dominantes da alma deles. O prazer deles foi cuspir em Jesus, dar-lhe bofetadas, zombar dele, prendê-lo, açoitá-lo, sentenciá-lo à morte e, por fim, serem os instrumentos malignos da sua execução na cruz. Além disso, zombavam de sua divindade, dizendo: “Se tu és Filho de Deus, desce da cruz”. Todas essas coisas foram feitas voluntariamente, sem serem forçados por nada de fora a fazerem o que fizeram. Simplesmente, eles deram ouvidos à sua própria natureza.
Eu não posso dizer que eles eram absolutamente livres, ou que a liberdade deles era de autonomia, porque eles não podiam fazer nada contrário ao que fizeram. Por que? Porque, ao fazerem voluntariamente o que fizeram, eles estavam cumprindo um decreto divino determinado de antemão. O verso 28 diz que as pessoas mencionadas acima fizeram tudo “o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram”. A liberdade de independência não existe nos seres humanos. Existe, sim, a liberdade de agência, mencionada acima, porque fizeram exatamente o que queriam fazer, mas não possuíam a liberdade de autonomia, justamente porque estavam debaixo de um plano previamente determinado. A soberania divina estava sobre eles e fazendo o que fizeram acabaram cumprindo um decreto divino.
Relação de Liberdade de Agência com Responsabilidade
Os seres humanos não são eximidos de responsabilidade porque Deus age soberanamente em suas vidas. Deus não anula a responsabilidade dos homens porque ele os criou agentes livres. A responsabilidade de um ser humano está vinculada à sua liberdade de agência. Os seres humanos são considerados culpados pelas transgressões que cometem contra a lei de Deus porque eles fazem todas as coisas conforme eles querem, porque agem voluntariamente como livres-agentes que são, sem serem forçados por nada externamente.
Veja o exemplo de Davi quando decidiu fazer o censo de Israel. Ele o fez porque quis fazer e, por isso, se tornou responsável por ele, vindo a pedir perdão a Deus por ter feito o que fez e do modo como o fez (2 Sm 24.10). Todavia, ele fez despertado pela soberania de Deus, que se irou contra os israelitas (2 Sm 24.1). Davi fez o quis fazer, foi culpado pelo que fez e pela forma como fez, mas por detrás do seu ato estava a soberania divina. Este é apenas um exemplo de tantos outros que veremos à frente. Todos os exemplos que se seguirão neste livro evidenciam a noção compatibilista que a Escritura apresenta das duas grandes verdades operando juntas: a soberania divina e a liberdade responsável dos seres humanos
O COMPATIBILISMO JUSTIFICADO
1) Assumindo que o compatibilismo é uma realidade ensinada nas Escrituras, vamos tentar mostrar, até onde isso é possível, como ele se processa.
A primeira afirmação nesta parte do capítulo é que não sabemos exatamente como as duas grandes verdades ensinadas acima se encaixam perfeitamente, devido à limitação de nossa visão de Deus e por causa da dificuldade de definição de termos usados, especialmente a idéia de liberdade. Essas duas verdades não se excluem e nem são contraditórias entre si. Todavia, a despeito de serem compatíveis entre si, permanece um elemento misterioso que não podemos explicar porque a parte mais profunda dessa matéria foge à nossa capacidade de entendimento.
2) Assumindo que o compatibilismo é uma realidade nas Escrituras, temos que aceitar que, mesmo sendo o sumo bem, Deus está por detrás do bem e do mal, mas de um modo diferente em cada um deles. Deus não está por detrás do mal do mesmo modo que está por detrás do bem. A Escritura afirma que Deus está por detrás do bem dando o desejo de coisas santas e realizando as coisas santas nos cristãos. Paulo chama isso “querer e realizar” (Fp 2.13).
Todavia, Deus não está por detrás do mal da mesma forma. Para que o mal seja executado, Deus usa a instrumentalidade das causas secundárias. Deus decreta a existência do mal, excita os seres racionais para que o mal aconteça, mas a execução do mal não é uma obra feita pela Causa Primária. Deus não pode ser acusado de praticar o mal. Somente as causas secundárias é que devem ser acusadas pelo mal, pois são elas que o praticam. Todavia, temos que nos lembrar de que o mal não foge da esfera da soberania humana. O próprio Deus assume a responsabilidade pela presença do mal no universo, embora os seres racionais sejam responsabilizados pela prática dos atos maus, pois eles são livres agentes. Este é o compatibilismo de que estamos falando.
Carson sumariza este ponto da seguinte forma:
“Se eu peco, talvez eu não possa pecar fora dos limites da soberania divina (ou os muitos textos citados não têm sentido algum), mas eu sozinho sou responsável por aquele pecado — ou talvez eu e aqueles que me tentaram… Deus não deve ser culpado. Mas se eu faço o bem, é Deus operando em mim o querer e o fazer segundo a sua boa vontade. A graça de Deus foi manifesta neste caso, e ele deve ser louvado.”[16]
3) Assumindo que o compatibilismo é uma realidade ensinada nas Escrituras, então temos que enfatizar a responsabilidade moral dos homens. A tendência dos adversários do compatibilismo é esta: Se Deus é soberano absoluto, o homem não pode ser responsável pelos seus atos. Esse raciocínio, de ranço arminiano, é nascido no conceito de liberdade de autonomia ou de independência. Esta liberdade é incompatível com a soberania absoluta de Deus. Todavia, não é desta liberdade que estamos tratando. O conceito de liberdade é um dos mais difíceis de serem definidos. O espaço aqui é pequeno para um tratado sobre a matéria.
Daremos atenção a este assunto de forma resumida mas a mais clara possível, dentro de nossas limitações.
A responsabilidade dos homens é resultante do fato de Deus criá-los com liberdade de agência, como já afirmamos anteriormente. Os seres humanos fazem escolhas o tempo todo: eles obedecem, rebelam-se, crêem, permanecem incrédulos, mas sempre são contados por Deus como responsáveis pelos seus atos, mas isto nunca acontece fazendo com que Deus seja contingente dos atos humanos.
Deus é apresentado na Escritura com soberano e, ao mesmo tempo, como Deus de bondade. Carson nos adverte muito sabiamente de um perigo: “Deus nunca é apresentado como cúmplice do mal, ou como secretamente malicioso, ou como permanecendo por detrás do mal como exatamente ele permanece por detrás do bem.” [17] A grande dificuldade é colocar estas duas coisas juntas, sem fazer injustiça ao Deus da Palavra. Mas isto que Carson disse é absolutamente a expressão da verdade.
Ninguém pode negar estas duas verdades apresentadas na Escritura com vários exemplos que serão analisados logo abaixo. Essas duas verdades são absolutamente compatíveis. Todos os teólogos que sustentam que estas duas verdades podem estar perfeitamente juntas, são chamados “compatibilistas”.
COMPATIBILISMO DEFENDIDO
Não podemos entender exatamente as relações entre as duas grandes verdades até aqui ensinadas. Não conhecemos bem a Deus, porque a sua essência escapa ao nosso entendimento, pois ele é supremamente transcendente, indo além das limitações do espaço e do tempo, que são eminentemente categorias da criação. Todavia, quando ensinamos o compatibilismo nós reduzimos em muito a dificuldade de tentar explicar o inexplicável em Deus, porque não podemos compreender Deus. Não sabemos explicar como um Deus bom usa as suas criaturas, ou causas secundárias, para fazer as coisas moralmente más. Não cabe a nós explicar essas coisas no seu sentido mais profundo, mas cabe-nos afirmar a necessidade do compatibilismo, pois ele está evidente nas Escrituras. Ele nos ajuda a conciliar verdades que são irreconciliáveis porque não podemos compreender a natureza divina.
Todavia, o compatibilismo é negado em vários círculos de pensamento. Freqüentemente são sinergistas os negam o compatibilismo porque este tenta juntar duas coisas que por si mesmas, na conta dos sinergistas, não podem ser juntadas.
Os que crêem no chamado “livre arbítrio” não vêem possibilidade de compatibilismo, justamente por causa do seu conceito de liberdade, que implica necessariamente na possibilidade que todos os homens ainda possuem de escolha contrária, não importando a natureza que possuem. A soberania divina ensinada pelos reformados, segundo eles, torna os seres humanos marionetes, eliminando o livre-arbítrio que tem a ver com o poder de escolha contrária, isto é, com a capacidade de fazer algo que é contrário à natureza do homem. Quem crê no livre arbítrio se opõe ao compatibilismo, porque o conceito de liberdade ensinado pelos sinergistas impõe limitação à soberania divina do modo como a entendemos.
Os que crêem no chamado “livre arbítrio” não aceitam o compatibilismo por causa do seu conceito de presciência. A presciência, segundo eles, é a capacidade que Deus tem de antever os atos futuros que os seres humanos farão e, com base nesse conhecimento antecipado, faz as suas determinações. Portanto, a escolha divina está baseada no conhecimento que ele tem das cousas futuras que os seres humanos farão livremente. Eles tomam o texto de Romanos 8.29 e fazem com que Deus seja conhecedor de antemão dos atos dos homens, quando o texto diz que Deus conhece de antemão pessoas, não coisas que elas haveriam de fazer, como fé ou arrependimento. Esse tipo presciência tira de Deus a absoluta soberania dele, porque ele fica dependendo dos atos futuros dos homens para selar o destino deles. Uma soberania condicionada à vontade futura do homem. Neste caso, o compatibilismo cai por terra porque afirma a liberdade que o homem tem de escolher livremente no futuro, mas nega a determinação soberana dos atos divinos.
O compatibilismo deve ser defendido por todos os genuínoscristãos porque ele está contido nas Escrituras nos muitos exemplos que ainda vamos estudar. Carson afirma de maneira firme que devemos ver
“não somente que o compatibilismo em si mesmo é ensinado na Bíblia, mas que ele está ligado intimamente à natureza de Deus; por outro lado, sou direcionado a ver que minha ignorância a respeito de muitos aspectos da natureza de Deus é precisamente a mesma ignorância que me instrui a não seguir os caprichos de muitos filósofos contemporâneos e negam que o compatibilismo seja possível.”[18]
COMPATIBILISMO EXEMPLIFICADO
O aspecto mais notável dos textos que vamos analisar abaixo, é que eles mostram evidentemente que em nenhum ponto o agente humano é descartado de sua responsabilidade pelo fato de Deus estar por detrás de cada ato do homem. Não há como fugir de um compatibilismo sadio, que faz justiça aos textos da Escritura.
Há uma tremenda base bíblica para o compatibilismo que estuda a ação cooperativa de Deus com os homens, em todos os atos, obedecendo a seguinte ordem:
Atos bons dos homens bons
Atos bons dos homens maus
Atos maus dos homens bons
Atos maus dos homens maus
Ilustrações do Concursus de Deus
Os textos que tratam do compatibilismo, isto é, da soberania divina e da liberdade humana colocadas juntas, evidenciando o concursus divino nos atos dos seres humanos, são muitos na Escritura. Como a história do mundo é feita de atos maus e bons, e de homens bons e maus, temos que admitir que a providência trata domodus operandi divino, aliás muito desejado e bem-vindo. Esse modo de Deus trabalhar ajuda-nos muito a compreender uma porção de eventos narrados na Escritura.
Analisaremos alguns exemplos seguindo a seguinte ordem: O concursus de Deus nas coisas boas que o homem bom faz, nas coisas boas que os homens maus fazem, nas coisas más que os homens bons fazem e nas coisas más que os homens maus fazem.
1. O CONCURSUS DE DEUS E DO HOMEM NAS COISAS BOAS
Para os estudiosos cristãos, o concursus de Deus não tem sido um grande problema quando se trata das ações boas dos homens, sejam eles bons ou maus. Os cristãos reformados não têm muitas dúvidas sobre o fato de Deus participar nas ações boas dos homens, especialmente porque eles crêem na doutrina da “depravação total” do homem. Crendo nela eles raciocinam corretamente: “Se Deus não operar no homem, o homem não fará bem algum”.
Vejamos a base bíblica para este tópico:
CONCURSUS de Deus nos Atos Bons dos Homens Bons
Por homens bons aqui neste tópico, refiro-me aos regenerados, aos que já receberam a atuação graciosa de Deus, sendo, portanto, homens remidos.
De todos os casos de compatibilismo a serem explicados, o desta parte é o mais simples, e é o que desperta menos controvérsia. Todos concordam que “Deus é quem efetua em nós o querer e o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). Aqui estamos tratando das ações dos homens regenerados. Pessoas regeneradas também são pessoas responsáveis. Como possuidores da liberdade de agência que é inalienável a todos os seres humanos e da liberdade da escravidão do pecado que é típica dos remidos (Jo 8.32, 34, 36), os regenerados têm a responsabilidade de apresentar bons pensamentos, boas ações, assim como evitar maus pensamentos e más obras. Paulo insta seus leitores: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade: porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne…” (Gl 5.13). Pedro também tem um conselho semelhante: “como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus” (1 Pe 2.16). Os regenerados pelo Espírito têm a responsabilidade de fazer o bem, mesmo sabendo que Deus é quem opera as coisas santas, justas e boas neles.
Deus opera em nós a regeneração, capacitando-nos a nos arrependermos de nossos pecados e a crermos nas suas promessas. Sabemos que essas coisas vêm de Deus, mas ele exige de nós ambas as coisas. Não podemos escapar desta verdade da Escritura. Hoekema diz:
“A ênfase bíblica sobre a soberania de Deus, portanto, não elimina a necessidade de uma resposta pessoal às propostas do Evangelho. Nem a ênfase escriturística sobre a eleição divina cancela a necessidade da escolha humana. Deus salva-nos como pessoas criadas.” [19]
Mesmo sabendo que Deus é quem opera em nós “tanto o querer como o realizar” nas coisas soteriológicas, Paulo nos exorta a “desenvolvermos a nossa salvação com temor e tremor” (Fp 2.12).
O mesmo acontece nos atos relativos à nossa santificação. Há um concursus entre Deus e o homem. Deus age internamente em nosso coração, agindo secretamente, e nós somos chamados à santificação. Paulo diz: “Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus” (2 Co 7.1), mesmo sabendo que Deus é o autor de nossa santificação.
Todo ato bom é uma combinação de uma obra santificadora de Deus que se mostra ser também um ato de obediência do homem. A ordem correta dessa combinação seria esta: nós operamos porque Deus opera em nós. Fazemos o que é santo porque Deus nos santifica. Não somos passivos (como o somos na regeneração), mas fazemos alguma coisa em resposta à operação divina em nós. É por essa razão que damos graças a Deus por todas as coisas boas que acontecem conosco e em nós. Portanto, porque Deus trabalha em nós, nós fazemos o que temos que fazer. Esta é a ordem dos fatores do concursus de Deus nos atos bons dos homens bons.
CONCURSUS de Deus nos Atos “Bons” dos Homens Maus
Por atos “bons” dos homens maus, eu quero dizer os atos que são considerados aceitáveis por todos nós e qualificados como que trazendo conseqüências boas para os nossos semelhantes, embora nem sempre esses atos sejam nascidos em motivos puros. Por “homens maus” refiro-me aos não-regenerados, os que ainda não experimentaram a graça renovadora de Deus e que, no entanto, são capacitados a fazer coisas que, aos nossos olhos, são aceitáveis e justas, embora nunca meritórias, para cumprir os desígnios de Deus neste mundo.
Exemplo de Ciro
O exemplo de Ciro, o rei da Pérsia: Este era um homem ímpio que veio a fazer alguma coisa “boa”, isto é, algo que trouxe um enorme benefício para o povo de Judá que estava no cativeiro. Deus sempre usa homens ímpios para cumprirem os seus propósitos redentores para com seu povo.
Os capítulos 41 a 45 do livro de Isaías são gloriosos, porque neles vemos Deus falando em libertação, redenção, salvação! Eles estão entre os textos mais lindos da Escritura! Gloriosamente Deus diz:
“Assim diz o Senhor, que te redime, o mesmo que te formou desde o ventre materno: Eu sou o Senhor que faço todas as coisas, que sozinho estendi os céus, e sozinho espraiei a terra; que desfaço os sinais dos profetizadores de mentiras, e enlouqueço os adivinhos; que faço tornar atrás os sábios, cujo saber converto em loucuras; que confirmo a palavra do meu servo, e cumpro o conselho dos meus mensageiros; que digo de Jerusalém: Ela será habitada; e das cidades de Judá: Elas serão edificadas; e, quanto à suas ruínas: Eu as levantarei” (Is 44.24-26).
Esta é uma atividade redentora com relação ao cativeiro de Judá na Babilônia, e esta atividade de Deus é vista claramente quando ele levantou Ciro para começar sua tarefa de trazer de volta o povo que estava no cativeiro, para a sua própria terra. No verso seguinte Deus diz: “que digo de Ciro: Ele é o meu pastor,e cumprirá tudo o que me apraz…” (Is 44.28). Deus vai usar um homem ímpio para um propósito bom que Deus havia determinado de antemão, porque havia dito que libertaria o seu povo do cativeiro muito antes dele ser tornado cativo.
No capítulo 45 de Isaías Deus, então, mostra como ele conduziu Ciro no cumprimento dos seus planos. Veja, passo a passo, a atividade de Deus através de um rei ímpio, o rei da Pérsia. Observe que Ciro era um dualista, isto é, ele cria na existência de um deus do bem e de outro do mal. Todavia, Deus insiste com Ciro enfatizando a existência de um só Deus, ele próprio, e que ninguém mais tem o governo e a história do mundo. Somente ele, e também insistiu que ele faz todas as coisas que lhe apraz. Eis as palavras e a atividade concursiva do Senhor:
Análise de Texto
Is 45.1-7 – Assim diz o Senhor ao seu ungido, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações ante a sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas, que não se fecharão. Eu irei adiante de ti, endireitarei os caminho tortuosos, quebrarei as portas de bronze, e despedaçarei as trancas de ferro; dar-te-ei os tesouros escondidos, e as riquezas encobertas, para que saibas que eu sou o Senhor, o Deus de Israel, que te chama pelo teu nome. Por amor do meu servo Jacó, e de Israel, meu escolhido, eu te chamei pelo teu nome, e te pus o sobrenome, ainda que não me conheces. Eu sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz, e crio o mal; eu o Senhor, faço todas estas coisas.”
Há alguns pontos importantes que não podem ser esquecidos neste texto:
1) O texto diz que Ciro era o ungido do Senhor. Isto quer dizer que ele era credenciado por Deus para fazer o que ele havia determinado que fosse feito em prol de Judá e contra os inimigos de Judá, os babilônicos. As nações adversárias iriam cair nas suas mãos. Isso significa que Ciro iria ser vitorioso sobre elas e sobre os seus monarcas;
2 ) A obra de abater as nações era primordialmente uma obra divina para a qual Deus usou Ciro. Observe que o texto diz: “eu irei adiante de Ciro, abrindo todos os caminhos e portas para que Ciro pudesse ser vitorioso. Observe que em qualquer ato que os homens venham fazer, Deus é o que tem a iniciativa. O compatibilismo do concursus é claramente visto nesta passagem. Observe que o texto diz que Deus o “toma pela mão direita”. Isto quer dizer que Deus conduziu Ciro em tudo o que ele veio a fazer. Não é uma obra feita independente ou isolada de Deus, mas trata-se de uma obra feita a dois;
3 ) Além de cumprir os seus propósitos de libertar Israel da mão dos babilônios, Deus queria que Ciro soubesse que somente Jeová era Senhor. Não havia nenhum Deus semelhante a ele;
4 ) O curioso desta narrativa era que, embora estivesse para fazer tudo o quanto veio a fazer, Ciro nunca conheceu a Deus. Isto quer dizer que nunca nenhum profeta apareceu a ele para anunciar a Palavra de Deus, revelando quem Deus era, e significa também que nunca Ciro veio a ser um homem temente a Deus, um crente;
5 ) Deus ensinou a Ciro, mesmo sem ele o conhecer, que há somente um Deus, não dois, como pensavam os dualistas persas. Deus queria mostrar a Ciro que as coisas boas e agradáveis que acontecem no mundo, assim como as tristes e desagradáveis e violentas teria como responsável último um Deus que participa de todos eventos deste mundo, para que a sua vontade seja feita neste mundo de maneira inquestionável. Deus mostra a Ciro que a soberania do universo, dos reinos e dos reis é totalmente do Deus Altíssimo.
Portanto, Ciro recebe a ordem de Deus e o seu acompanhamento em todas as suas atividades más para abater as nações inimigas de Israel e sua atividade boa de libertar o povo de Israel. Ciro liberta o povo, constrói a cidade e faz o povo voltar para a terra. Os propósitos redentores de Deus são cumpridos através da atividade de um homem ímpio que recebe toda a assistência divina para realizar tudo o que quer. Então, Ciro, o rei da Pérsia derrota violentamente os babilônicos, traz de volta os cativos e ordena a reconstrução de Jerusalém. Todavia, nada disto ele teria feito sem o concursus de Deus. Foi uma boa obra feita por um homem mau.
2. O CONCURSUS DE DEUS E DO HOMEM NAS COISAS MÁS
O grande problema dentro da teologia cristã, mesmo em círculos Reformados, tem sido o de conciliar a relação de Deus com os atos maus dos homens. É neste assunto do compatibilismo que está o centro de muitas divisões dentro do cristianismo. A grande dificuldade está no entendimento dos termos: soberania, liberdade, livre-arbítrio, livre agência, etc. Entendidos estes termos, as coisas ficam um pouco menos difíceis.
CONCURSUS de Deus nos Atos “Maus” dos Homens Bons
Para os nossos propósitos, consideramos neste ponto homens bons aqueles que estão debaixo de uma relação de pacto com Deus, aqueles que estão debaixo da administração graciosa de Deus, ou seja, debaixo da revelação divina ou debaixo da pregação da Palavra de Deus. Quando dizemos “homens bons”, não estamos qualificando a totalidade de suas vidas, mas apenas vendo-os na relação pactual com Deus.
Exemplo dos irmãos de José
Estes eram filhos de Jacó, filhos nascidos debaixo da revelação divina, do Deus que apareceu a Abraão, Isaque e Jacó. São os filhos de Jacó que tiveram seus nomes dados às 12 tribos de Israel que, por sua vez, vieram a existir subseqüentemente na história do povo. Seus nomes são citados freqüentemente na Escritura como nomes representativos de coisas espiritualmente significativas. Nesse sentido, eles são aqui considerados como “bons”, não que necessariamente suas vidas tenham sido moralmente boas. Eles eram separados para Deus, “santos” num sentido, como a Escritura costuma chamar-nos a todos os que estão, hoje, debaixo da administração do evangelho da graça, membros da igreja visível, pelo menos.
Os irmãos de José ficaram extremamente enciumados dele (Gn 37.11) por causa das coisas que fazia e era, e pelo amor especial que seu pai, Jacó, lhe dedicava. Zombeteiramente, quando José se aproximou um dia, disseram: “Lá vem o sonhador!” (Gn 37.19). Essa frase indicava ironicamente uma grande dose de ciúme e, com base nesse sentimento maligno, conspiraram contra José, para o matar (Gn 37.18). Todos nós sabemos o que lhe aconteceu: seus irmãos o lançaram numa cova, mataram um animal e sujaram de sangue a capa de José, disseram ao pai que José havia morrido estraçalhado por um animal e Jacó chorou por muitos dias inconsolavelmente (Gn 37.31-35). Mas Rúben, o irmão mais velho, sugeriu que eles não deveriam matar José, mas vendê-lo aos mercadores que o levaram para ser escravo no Egito. O resto da história todos conhecemos. [20]
Logo depois de grande fome na terra, no tempo das sete vacas magras, Jacó mandou seus filhos irem ao Egito em busca de trigo, porque sabia que lá havia abundância de trigo. José, a essa altura , depois de muitos percalços, já era o segundo homem no Egito. Depois de vários incidentes significativos registrados em Gênesis [21], José resolve dar-se a conhecer aos seus irmãos. Aqui o episódio é emocionante, e o concursus é claramente reconhecido por todos que estudam seriamente esta matéria.
Os irmãos de José haviam feito tudo de mau contra José. Eles zombaram de sua honestidade profética, lançaram-no por algum tempo numa cova, venderam-no como escravo, além de fazerem um grande mal a Jacó. Todavia, eles fizeram tudo isso voluntariamente, de acordo com os seus desejos dominantes de sua alma, sem serem forçados por nada de fora. Fizeram exatamente o que quiseram, de acordo com os seus corações. Contudo, José reconheceu que, por detrás das ações más de seus irmãos, havia uma ação cooperadora (ou concursiva) e controladora de Deus, guiando todos os atos para o cumprimento dos seus propósitos. Aquilo que os irmãos de José fizeram de mau, José atribuiu a uma obra de superintendência divina. Observe o que José disse:
Análise de Texto
Gn 45.5-8 – “Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui; porque para a conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na terra, e ainda restam cinco anos me que não haverá lavoura nem colheita. Deus me enviou adiante de vós, para conservar a vossa sucessão na terra, e para vos preservar a vida por um grande livramento. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e, sim, Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador, em toda a terra do Egito.” [22]
— Primeiro, o texto trata dos atos maus dos irmãos de José, que o haviam vendido como escravo. José lhes recorda isso.
— Segundo, veja a obra providencial de Deus nos atos maus dos homens. José entendeu que Deus estava por detrás daqueles atos maus, por isso disse: “porque para a conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós”. Deus sempre tem a iniciativa nessa obra concursiva, que é uma obra conjunta com os homens. Os homens não fazem o bem nem os males independentemente da ação de Deus. Há um concursus divino em todos os atos humanos. A ação de Deus sempre subjaz as ações dos homens.
— Terceiro, Deus decretou a fome na terra, usou os atos maus dos homens, agiu misteriosamente para que aquilo tudo acontecesse, mas os próprios irmãos de José sentiram-se responsáveis e culpados pelos seus atos. Isto fica provado diante do seu temor diante de José. O fato de haver uma combinação de ação – a de Deus e a dos homens – nos males praticados, não elimina a responsabilidade dos atos feitos pelas causas secundárias. Sempre as criaturas, os agentes instrumentais de Deus, haverão de ser culpados pelo que fazem, mesmo que façam alguma coisa que cumpra um decreto divino.
Veja um pouco mais do drama de consciência dos irmãos de José, por causa dos seus pecados e, ao mesmo tempo a magnanimidade do caráter perdoador daquele que recebeu a ofensa:
Gn 50.15-21 – Vendo os irmãos de José que seu pai já era morto, disseram: É o caso de José nos perseguir, e nos retribuir certamente todo o mal que lhe fizemos…Respondeu-lhes José: Não temais; acaso estou eu em lugar de Deus? Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. Não temais, pois; eu vos sustentarei a vós outros e a vossos filhos. Assim os consolou, e lhe falou ao coração. [23]
Perceba que uma vez mais José entendeu a participação de Deus nos atos maus deles, mas tal forma que eles se consideraram inteiramente responsáveis e culpados pela sua própria atitude. Carson, contudo, adverte:
José não diz que seus irmãos o venderam maldosamente para a escravidão, e que Deus reverteu a situação, após o fato, fazendo com que a estória tivesse um final feliz. Como poderia este ter sido o caso, se o intento de Deus era produzir o bem de salvar muitas vidas? José também não sugere que Deus havia planejado trazê-lo para o Egito com um tratamento de primeira classe durante todo o percurso, mas infelizmente os irmãos estragaram Seu plano de algum modo, resultando num hiato pelo fato de José ter que passar uma década e meia como escravo ou em prisão. Os irmãos tiveram certas iniciativas más, e não há nenhuma menção dos arranjos de viagem de José.[24]
Deus estava agindo de uma maneira soberana, e José entendeu assim, mas os irmãos foram considerados culpados pelos seus atos. Contudo, Deus não pode ser reduzido a um personagem com um papel meramente contingente. Ele não estava dependente dos irmãos para realizar os seus propósitos, mas é da vontade dele usar as causas secundárias para que seus propósitos cheguem a bom termo. O que podemos concluir deste exemplo é que os homens agiram com intenções más contra José; Deus tinha as boas intenções nos seus planos, e ele se serviu dos atos cometidos voluntariamente pelos homens, mas de tal modo que os atos deles se encaixassem exatamente no cumprimento do seu plano maior de arranjos providenciais.
Exemplo de Davi
Dentro da conceituação explicada acima, Davi era um homem bom que acabou cometendo um ato mau, mas não sem o concursus da operação divina. Davi havia recebido a revelação divina e vivia debaixo das ordenanças do pacto, sendo até chamado de “o homem segundo o coração de Deus”.
Observe a ordenação divina
A ordenação divina para a prática do censo em Israel fica muitíssimo clara no texto a seguir:
2 Sm 24.1 – “Tornou a ira do Senhor a acender-se contra os israelitas, e incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá.”
O leitor deve observar uma coisa muito importante com respeito a este incidente: No texto acima é dito que a ordenação é de Deus. No texto paralelo de 1 Crônicas 21.1 podemos perceber que Satanás é o instrumento divino para incitar Davi a levantar censo em Israel. A ordenação foi divina, mas a ferramenta que Deus usou em sua ordenação foi o seu “servo” Satanás, que neste caso é o agente da ira divina.
Perceba como Deus pode fazer uso de seres morais para que os seus propósitos sejam cumpridos.
Observe o pecado de Davi
Em que sentido a realização do censo de Judá e Israel era um pecado? Há várias sugestões de autores cristãos, mas nenhuma delas é convincente.[25] É difícil, contudo, pelo contexto, saber a razão real desse censo ser um pecado. Que foi pecado não temos dúvida alguma, porque o próprio Davi o confessou (v.10).
Todavia, podemos deduzir que Davi portou-se de maneira soberba, inclusive contra o seu general Joabe, impondo a sua autoridade sobre ele, fazendo com que o censo fosse realizado (v.4). Davi estava consciente da sua própria realeza poderosa e usou a sua força para impor-se. É possível que os procedimentos ordenados por Davi e o seu próprio comportamento pessoal tenham sido pecaminosos.
Observe a livre-agência de Davi
Davi não teve dúvidas de que o seu ato de mandar fazer o censo da nação foi pecaminoso e que ele o fez deliberadamente, com consciência de todos os seus atos. Ele praticou seus pecados sabendo que estava fazendo algo errado, mas não deixou de cometer seus atos loucamente.
Embora nos seja escondido o real motivo do pecado, é fácil perceber nas palavras de Davi que ele havia feito alguma coisa muito errada. Observe as palavras do texto:
2 Sm 24.10 – “Sentiu Davi bater-lhe o coração depois de haver recenseado o povo, e disse ao Senhor: Muito pequei no que fiz; porém agora, ó Senhor, peço-te que perdoes a iniqüidade do teu servo; porque procedi mui loucamente.”
Davi havia feito algo muito pecaminoso, pois o seu estado emocional denuncia o seu pecado. Enquanto ele pecava ele não havia percebido o seu pecado, mas somente depois que o censo terminou (“nove meses e vinte e um dias” – v.8) é que ele caiu em si. Quando a contagem se mostrou em números (v.9) é que o coração de Davi se acelerou pelo reconhecimento do seu pecado.
A verdade da qual não podemos fugir é que, mesmo não sabendo que era pecado o que estava fazendo, ele fez o que fez de maneira que nunca pode culpar ninguém pelo que fez. Prova disso é que ele trouxe para si toda a culpa quando disse: “Muito pequei no que fiz… o pecado do teu servo, pois procedi loucamente”. Ele não poderia culpar quem quer que fosse pelo que era dele somente. Não obstante a ordenação divina Davi acabou fazendo o que era a sua vontade pessoal.
Isso quer dizer que não há inconsistência entre a ordenação divina e a livre-agência do homem. O decreto divino e a agência humana mostram a possibilidade clara de um compatibilismo.
Observe a castigo de Davi
Houve a ordenação divina, o pecado voluntário de Davi e, agora, o castigo vem sobre ele.
Deus oferece a Davi uma escolha entre três tipos de castigo pelo seu pecado: sete anos de fome sobre a terra; estar três meses sob a perseguição do inimigo ou três dias de peste sobre a terra (v.12-13). Fazendo um jogo com a misericórdia divina, ele escolheu o castigo da peste. Todavia, quando milhares do povo morreram (v.15), Davi suplicou que o castigo viesse somente sobre ele e não sobre o povo que não tinha culpa naquele caso (v.17). A culpa era dele e ele havia procedido perfidamente. Portanto, o castigo devia ser assumido por ele.
Apenas recordemos: Houve a ordenação divina, o pecado voluntário de Davi e a conseqüente castigo pelo pecado. Claramente se nota o compatibilismo no texto acima. Deus age concursivamente com o homem, mas sempre de modo que o homem age livre e responsavelmente, recebendo a merecida punição. Esse compatibilismo será percebido ainda mais visivelmente nos pontos abaixo.
CONCURSUS de Deus nos Atos Maus dos Homens Maus
Exemplo de Nabucudonozor
A Babilônia foi o instrumento da Providência para a consecução dos planos divinos sobre Judá. Veja a ação do concursus de Deus nos atos maus do rei da Babilônia. Ambas as ações, do homem e de Deus, são claríssimas:
Observe o decreto divino
Somos informados pela Escritura que Deus é soberano, e essa soberania se manifesta inclusive na ação do rei da Babilônia. A Bíblia nos diz que Deus chamou Nabudonozor de “meu servo” [26] em Jeremias 25.9. Jeremias diz que Deus o haveria de trazer contra as terras de Judá “para as destruir totalmente, para os colocar como objeto de espanto e de assobio, e para colocá-los em ruínas perpétuas…Toda esta terra virá a ser um deserto e um espanto; estas nações servirão ao rei de Babilônia setenta anos.” (Jr 25.9-11). Esse foi o decreto que Deus deu a conhecer ao seu servo Jeremias.
Observe a livre-agência de Nabucodonozor
Como um livre agente, Nabucodonozor resolveu invadir Judá. Nessa invasão ele cometeu as maiores atrocidades de que se pode ter notícia (veja Jr 52.4-30; leia todo o livro de Lamentações de Jeremias e observe as barbaridades cometidas contra Judá). Nada do que ele fez foi contra a sua vontade. Ao contrário, ele fez exatamente aquilo que combinava com os desejos e os propósitos do seu coração. Quando ele estava sitiando Jerusalém e cometendo todas as atrocidades, ele fazia tudo isso como se fosse o rei de todo o mundo. A sua empáfia e arrogância podem ser facilmente percebidas em tudo o que fez. Ele agiu de acordo com as disposições dominantes da sua natureza. Deus nem sequer conversou com ele sobre a sua obra de destruição de Judá, apenas decretou e ele fez exatamente como queria, mas sem fugir dos planos previamente traçados por Deus para o destino de Judá.
Observe o concursus divino
O rei da Babilônia fez exatamente o que Deus havia planejado, cumprindo em todas as minúcias a determinação divina, sem o saber. Apenas fazia o que achava certo como monarca dos Caldeus.
Esse concursus de Deus naquela obra má pode acontecer por causa da Sua onipotência, porque a Escritura diz que “o coração do rei está nas mãos do Senhor; este, segundo o seu querer, o inclina” (Pv 21.1).
Jr 51.20-23 – “Tu, Babilônia, eras meu martelo e minhas armas de guerra, por meio de ti despedacei nações e destruí reis; por meio de ti despedacei o cavalo e o seu cavaleiro; despedacei o carro e o seu cocheiro; por meio de ti despedacei o homem e a mulher, despedacei o velho e o moço, despedacei o jovem e a virgem; por meio de ti despedacei o pastor e o seu rebanho, despedacei o lavrador e a sua junta de bois, despedacei governador e vice-reis.”
Deus inclinou o coração do rei de Babilônia para ele fazer todas as coisas que o seu decreto havia determinado, mas Nabucodonozor haveria de fazer tudo conforme as suas disposições interiores. O rei era a ferramenta usada para executar o seu juízo contra Judá . Deus chamou-o de “meu martelo”, através do qual Deus derrubou reinos e nações. Todavia, as ações desse martelo foram muito pecaminosas. Animais, homens, mulheres e crianças foram mortos brutalmente pelas ações ímpias de Nabucodonozor. No entanto, Deus toma as ações livres e maldosamente feitas pelo rei de Babilônia, e diz “Eu despedacei o cavalo e o seu cavaleiro, eu despedaçei… Por meio de ti eu despedacei homem e mulher, o velho e o moço, o jovem e a virgem.” As ações ímpias foram cometidas pelo rei de Babilônia, mas Deus assume a sua concorrência naqueles atos maus desse homem mau. Os homens nunca fazem os atos deles, sejam eles bons ou maus, independentes da obra concursiva de Deus. Deus é quem inclina o coração do rei para onde ele quer, porque ele é suficientemente soberano para ter os seus decretos cumpridos, mas Deus faz de tal forma que o ato pecaminoso é somente das suas criaturas, não dele.
Observe o castigo de Nabucodonozor
Mas o concursus de Deus não despoja o homem da responsabilidade dos seus atos maus. Veja o que Deus disse da atitude má de Nabucodonozor:
Jr 25.12-14 – “Acontecerá, porém, que, quando se cumprirem os setenta anos, castigarei a iniquidade do rei de Babilônia e a desta nação, diz o Senhor, como também a terra dos caldeus; farei deles ruínas perpétuas. Farei que se cumpra sobre aquela terra todas as minhas ameaças, que proferi contra ela, tudo quanto está escrito neste livro, que profetizou Jeremias contra todas as nações. Porque também eles serão escravos de muitas nações e grandes reis; assim lhes retribuirei segundo os seus feitos, e segundo as obras das suas mãos.”
Percebe-se claramente as duas verdades neste exemplo: a soberania divina e os atos dos livres agentes que são considerados responsáveis diante de Deus. No texto abaixo as duas verdades também aparecem juntas. Primeiro, a soberania de Deus e, então, a ação má do rei e a conseqüente punição. Observe novamente o texto abaixo e veja como Deus responsabiliza rei pelas suas obras más:
Jr 51.20-24 – “Tu, Babilônia, eras meu martelo e minhas armas de guerra, por meio de ti despedacei nações e destruí reis; por meio de ti despedacei o cavalo e o seu cavaleiro; despedacei o carro e o seu cocheiro; por meio de ti despedacei o homem e a mulher, despedacei o velho e o moço, despedacei o jovem e a virgem; por meio de ti despedacei o pastor e o seu rebanho, despedacei o lavrador e a sua junta de bois, despedacei governador e vice-reis. Pagarei à Babilônia, e a todos os moradores da Caldéia, toda a sua maldade, que fizeram em Sião, ante os vossos próprios olhos, diz o Senhor”. [27]
Mesmo estando por detrás dos atos maus dos homens, atos que são feitos voluntariamente, Deus considera os homens culpados por seus erros, pela simples razão que o profeta Habacuque deu no seu livro:
Hc 1.3-13 – “Por que me mostras a iniquidade, e me fazer ver a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há contendas e o litígio se suscita. Por esta causa a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta; porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida. Vede entre as nações, olhai, maravilhai-vos, e desvanecei, porque realizo em vossos dias obra tal, que vós não crereis, quando vos for contada. Pois eis que suscito os Caldeus, nação amarga e impiedosa, que marcha pela largura da terra, para apoderar-se de moradas não suas. Ela é pavorosa e terrível…Eles todos vêm para fazer violência…Então passam como passa o vento, e seguem; fazem-se culpados esses, cujo poder é o seu Deus. Não és tu desde a eternidade, ó Senhor meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó Senhor, para executar juízo puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar; por que, pois, toleras os que procedem perfidamente, e te calas quando o perverso devora aquele que é mais justo do que ele?”
Nestes versos acima percebe-se claramente a maldade em forma de matança, como expressão daquilo que os Babilônicos realmente desejaram, mas Deus arroga-se como co-autor daquela façanha. E, no entanto, porque Deus não pode suportar o mal, ele considera culpados os seus praticantes. Não é facil juntar as coisas, mas é isto que a Escritura apresenta como sendo um compatibilismo. E temos que aceitar do modo como a Escritura apresente. Do contrário seremos achados lutando contra o próprio Deus. Berkouwer diz :
“A liderança de Deus atravessa os séculos, e em Sua liderança a ação do homem é tomada como instrumento em Seu serviço. A atividade do homem cai, como o menor dos dois círculos concêntricos, completamente dentro do círculo maior dos propósitos de Deus.” [28]
Exemplo de Jeroboão
Este exemplo está registrado em 1 Rs 14.1-14. Deus havia tirado o reino da casa de Davi e dado a Jeroboão, como havia prometido, por causa da iniquidade de Davi.
Observe o decreto divino
E Jeroboão fez tudo o que era mau perante o Senhor, mas do que todos os seus antecessores, cometendo apostasia e idolatria (v.9). Através do profeta Aías, Deus disse à mulher de Jeroboão, “duras novas” (v.6c):
1 Rs 14.10 – “Portanto, eis que trarei o mal sobre a casa de Jeroboão, e eliminarei de Jeroboão todo e qualquer do sexo masculino, assim o escravo como o livre, e lançarei fora os descendentes da casa de Jeroboão, como se lança fora o esterco, até que de todo ela se acabe.”
Agora o texto mostra o propósito de Deus, a sua determinação. Deus dá a conhecer ao profeta o seu desígnio com respeito à descendência de Jeroboão. Perceba que o decreto inclui a eliminação de toda a descendência masculina do rei e o modo desprezível como isso iria acontecer (“como se lança fora o estrume”).
Observe o Instrumento divino para o cumprimento do decreto
Então, Deus estabeleceu quem haveria de cumprir a profecia:
1 Rs 14.14 – “O Senhor, porém, suscitará para si um rei sobre Israel, que eliminará, no seu dia, a casa de Jeroboão…”.
De antemão, Deus disse que a casa de Jeroboão haveria de ser eliminada por um rei, que o próprio Deus haveria de constituir (1 Rs 16.2). Em 1 Reis 15.28, o Senhor levanta Baasa para matar Nadabe, o filho de Jeroboão, para tomar o reino, e reinou no trono que era de Jeroboão. Esse homem era um plebeu, sem qualquer ascendência real, que veio a tornar-se rei. Simplesmente ele é o instrumento divino para dar cumprimento aos seus propósitos de antemão anunciados à mulher de Jeroboão.
Os versos seguintes mostram a profecia de 1 Reis 14.10 sendo cumprida em detalhes:
1 Rs 15.29-30 – “Tão logo começou a reinar, matou toda a descendência de Jeroboão; não lhe deixou ninguém com vida, a todos exterminou, segundo a palavra do Senhor, por intermédio do seu servo Aías, o silonita; por causa dos pecados que Jeroboão cometera, e pelos que fizera Israel cometer, por causa da provocação com que irritara ao Senhor Deus de Israel”
Veja a ordenação divina sendo executada. Baasa não perdeu tempo. O primeiro a ser eliminado foi Nadabe, que ocupava o lugar de Jeroboão. Tão logo assumiu o trono, ele começou a por em prática o seu plano (que era o de Deus também e primeiramente) de matar toda a descendência de Jeroboão, “segundo a palavra do Senhor”. Não lhe bastou destronar o rei Nadabe, mas teve que destruir todos parentes de Jeroboão. Essa era a maneira dele se assegurar de que iria permanecer no trono sem perturbação.
Veja a razão da ordenação divina. Deus havia executado aquela sentença por causa dos pecados que Jeroboão cometera, Era a sua justiça sendo feita diante de um homem mau e ingrato.
Observe a livre-agência do instrumento divino
Não é difícil perceber que os atos de Baasa foram extremamente pecaminosos. Ele agiu barbaramente. A Escritura diz que Baasa era um homem ímpio e um descrente, pois ele conspirou contra o rei Nadabe expressando toda a sua malignidade (1 Rs 15.27). Em 1 Reis 15.34 é dito que “Baasa fez o que é mau perante o Senhor, e andou no caminho de Jeroboão e no seu pecado, o qual fizera Israel cometer.”
Tudo o que Baasa fez foi cuidadosamente e friamente planejado. Ele não foi levado por repentes de ira, mas arquitetou conscientemente a queda de Nadabe e a morte fria da descendência de Jeroboão. Ele agiu de acordo com as disposições dominantes da sua natureza. Foi um livre-agente, agindo sem ser forçado por nenhum compulsão externa. Apenas obedeceu os ditames do seu coração corrupto.
Observe a condenação do instrumento divino
O concursus está absolutamente claro no contexto desta passagem. Há uma determinação divina e, ao mesmo tempo, uma ação voluntária e responsável dos homens.
Volte aos incidentes narrados anteriormente. Em 1 Reis 14.10 Deus anuncia que o mal viria sobre a casa de Jeroboão, que seria exterminada. Esse extermínio aconteceu através de Baasa. Todavia, antes mesmo desse extermínio acontecer Deus já anuncia o que haveria de acontecer ao exterminador de Jeroboão. Por causa do que fez a Jeroboão, a condenação divina foi pronunciada antecipadamente sobre Baasa.
Veja o que o texto diz :
1 Rs 14.11 – “Quem matar a Jeroboão na cidade os cães o comerão, e o que morrer no campo aberto as aves do céu o comerão, porque o Senhor o disse.”
Mesmo havendo uma determinação divina, Deus considera o homem que matou a descendência de Jeroboão culpado de seus pecados, porque seus atos foram feitos voluntariamente, segundo as inclinações da sua natureza pecaminosa.
Deus decretou a morte de Jeroboão, por causa dos seus pecados. Deus constitui Baasa como rei para fazer a eliminação maldosa daquelas pessoas, e o considerou responsável por seus atos. Todos os atos cometidos por Baasa foram cheios de maldade, conforme o seu coração mau. O texto da Escritura diz que Deus matou a Baasa “também porque ele matara a casa de Jeroboão” (1 Rs 16.7c). Baasa e sua descendência foram mortos do mesmo modo que os descendentes de Jeroboão. Como esses aqueles não tiveram sepultura porque foram comidos pelos cães e pelas aves do céu (1 Rs 16.4). Isso mostra que a preordenação divina, com seus arranjos para levar a cabo o seu plano, não isenta o homem de sua responsabilidade. A preordenação divina não elimina a responsabilidade humana porque todos os atos humanos são feitos sem qualquer compulsão externa, mas sempre eles são feitos voluntariamente, obedecendo os ditames da sua própria natureza pecaminosa. Deus sempre considera os homens responsáveis pelos seus atos, mesmo que o próprio Deus participe, de alguma forma, em sua ação providencial, naqueles atos para a consecução dos seus planos.
Observe o concursus divino
Na verdade não há duas forças ou dois poderes trabalhando paralelamente, o poder de Deus e o poder dos homens, que agem voluntariamente. Não, de forma alguma. Deus exerce o seu governo também através de causas secundárias. “O governo de Deus é executado e manifestado através da atividade humana,” [29] mas a atividade humana, que inclui a responsabilidade dos agentes, é extremamente importante para a consecução do plano maior de Deus.
Exemplo de Roboão
Uma outra evidência de concursus aconteceu no tempo de Roboão, filho de Salomão, no tempo da ruptura do reino por causa do pecado dos homens e, ao mesmo tempo, como manifestação da vontade e da atividade reveladora de Deus. A divisão do reino veio por causa do pecado de Roboão que, desprezando o conselho dos sábios do seu reino, deu ouvido aos jovens que haviam crescido com ele, que mostraram toda a sua pecaminosidade. [30]
Observe o decreto divino
Todavia, toda a atividade maligna de Roboão, quando exerceu um jugo extremamente pesado sobre o seu povo, é dita ser o cumprimento de um desígnio de Deus. Veja o que o texto sagrado diz, especialmente na parte italicizada:
1 Rs 12.13-15 – “Dura resposta deu o rei ao povo, porque desprezara o conselho que os anciãos lhe haviam dado; e lhes falou segundo o conselho dos jovens, dizendo: meu pai fez pesado o vosso jugo, porém eu ainda o agravarei; meu pai vos castigou com açoites, eu, porém, vos castigarei com escorpiões. O rei, pois, não deu ouvidos ao povo; porque este acontecimento vinha do Senhor, para confirmar a palavra que havia dito por intermédio de Aías, o silonita, a Jeroboão, filho de Nebate.”
Observe o concursus divino
Pode-se perceber mui claramente o concursus de Deus na obra maligna de Roboão. A atividade maligna de Roboão é dita ser uma atividade de Deus. Roboão ficou somente com duas tribos, enquanto Jeroboão ficou com dez tribos. Roboão, então, tentou uma investida contra as dez tribos, mas Deus lhe disse:
Porém veio a palavra do Senhor a Semaías, homem de Deus, dizendo: Fala a Roboão, filho de Salomão, rei de Judá, e a toda a casa de Judá, e a Benjamim, e ao resto do povo, dizendo: Assim diz o Senhor: Não subireis, nem pelejareis contra vossos irmãos, os filhos de Israel; cada um volte para a sua casa, porque Eu é que fiz isto. E, obedecendo eles à palavra do Senhor, voltaram como este lhes ordenara”(1 Rs 12.22-24).
Estes versos devem ser constrastados com 1 Reis 11.29 quando o profeta Aías se encontra com Jeroboão, pega a sua capa e a rasga em doze pedaços e, então, ali o Senhor diz a Jeroboão: “Toma dez pedaços, porque assim diz o Senhor Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino da mão de Salomão, e a ti darei dez tribos” (1 Rs 11.31). Houve a ordenação divina da divisão das tribos, e os atos maus de Roboão são considerados na Escritura como um ato de Deus. Aqui, uma vez mais, a sabedoria de Deus triunfa sobre a tolice dos homens, e a atividade de Deus não é contingente da atividade do homem. Deus é vencedor mesmo com o pecado dos homens, e sua vitória está na realização dos seus planos.
Exemplo de Senaqueribe, rei da Assíria
A sabedoria dos homens nunca poderá compreender os caminhos de Deus, nem como esses caminhos são traçados.
Observe o Decreto de Deus
Está registrado em Isaías 10.5-13. Deus envia uma profecia contra o rei da Assíria. Nunca Deus havia mandado qualquer profeta ao rei Senaqueribe para que ele fizesse o que veio a fazer. Portanto, não houve nenhuma ordem divina, nenhuma orientação de Deus. Apenas havia a determinação divina de fazer do rei da Assíria um instrumento da sua justiça punitiva para com Samaria.
Observe o Instrumento divino para cumprir o decreto
Verso 5 – Assíria, nesta passagem é considerada “o cetro da ira de Deus”. O texto também diz que a “vara” que a Assíria está para usar contra Israel, “é oinstrumento do meu furor” (v.5).
Verso 6 – Os olhos humanos não podem compreender o modo como Deus age. Os assírios não possuíam nenhuma palavra profética divina dando-lhes indicação de que deveriam invadir Israel. Como, então, é dito que o Senhor envia a Assíria contra uma nação ímpia, que é Israel? O curioso é que sendo enviados por Deus, como podem eles ser culpados de ir até Israel? Como podem eles ser punidos com justeza por fazerem exatamente o que Deus lhes havia determinado fazer? É aqui que repousa a consistência do decreto divino com as ações voluntárias dos homens. Nunca teremos uma resposta detalhada e plena das ações de Deus. Todavia, tudo o que Deus revela devemos perscrutar; o que ele deixa escondido é melhor não tentar descobrir.
Observe a livre-agência do instrumento divino
Verso 7 – Embora o rei Senaqueribe tenha sido enviado por Deus para punir Israel, por causa dos seus pecados, todavia, o instrumento da ira, Senaqueribe, nunca soube que foi instrumento usado por Deus. Ele nunca teve qualquer intenção de obedecer a Deus. O Deus de Israel nunca entrou na sua conta. Ao contrário, o rei da Assíria sempre pensou estar fazendo a sua própria vontade, conquistando os reis como ele pensava que devia fazer, agindo egoisticamente com motivos ímpios.
Ao invés de pretender executar os desígnios de Deus, o conquistador jactou-se de fazer tudo o que fez pelo seu próprio poder e para a sua própria glória
Versos 8-9 – Senaqueribe confiou no poder dos seus próprios príncipes, que eram sinônimo de realeza poderosa, e confiou também nos seus deuses.
Versos 10-11 – Os assírios jactavam-se do que eram e do que possuíam, e zombavam da fraqueza de Jerusalém. Os assírios diziam:
“O meu poder atingiu os reinos dos ídolos, ainda que as suas imagens de escultura eram melhores do que as de Jerusalém e do que as de Samaria. Porventura como fiz a Samaria e aos seus ídolos, não o faria igualmente a Jerusalém, e aos seus ídolos?”
Realmente eles eram uma nação poderosa o bastante para derrotar Israel, mas o que eles não sabiam é que estavam sendo instrumentos do “furor da ira de Deus, contra uma nação que havia se tornado ímpia, que era Israel.
Então os assírios invadiram Israel e fizeram tudo o que o Senhor havia determinado (conforme a Sua ordem, mas sem palavras, conforme podemos ver no v.6). Os soldados do rei da Assíria fizeram tudo quando quiseram, como se fossem os donos do mundo, dando asas a sua maldosa imaginação e congratulando-se consigo mesmos pelos seus mal-feitos. A obra de maldade havia sido feita contra Israel. Era mais uma obra maligna dos homens.
Observe o concursus divino
Verso 12 – Muito tempo antes de que toda a obra dos assírios fosse começada em Jerusalém, Deus havia dito que aquela obra dos assírios era obra dele: “Por isso acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda sua obra no monte Sião e em Jerusalém…” (v.12a). Assim, de uma maneira soberana, misteriosamente secreta, portanto inexcrutável à sabedoria humana, Deus envia a nação assíria contra Israel. Todavia, a ação orgulhosa e cheia de paixões do rei Senaqueribe e seus exércitos não é independente da ação concorrente de Deus.
Deus aceita a sua parte de responsabilidade naquilo que aconteceu a Jerusalém. Há muitos hoje que não crêem nesse concursus de Deus nas obras más dos homens, mas Ele próprio assume a sua atitude providencial, para o cumprimento dos seus fins. Nessa tarefa, Ele sempre se serve das causas secundárias e, assim, Ele mostra o Seu governo no mundo.
Observe a punição do instrumento
Versos 12-14 – Contudo, mesmo assumindo que a obra dos assírios era Sua obra, Deus não hesita em punir os assírios por haverem feito o que fizeram e pelo modo arrogante como o fizeram. Veja o que o texto diz:
“…então castigará a arrogância do coração do rei da Assíria e a desmedida altivez dos seus olhos, porquanto este (o rei) disse: com o poder da minha ira fiz isto, e com a minha sabedoria porque sou entendido; removi os limites dos povos, e roubei os seus tesouros, e como valente abati os que se assentavam em tronos. Meti a mão nas riquezas dos povos como a um ninho, e como se ajuntam os ovos abandonados, assim eu ajuntei toda a terra, e não houve quem movesse a asa, ou abrisse a boca ou piasse”.
Não há como escapar dessa terrível, mas majestosa verdade! Deus reina e, como tal, impõe as suas próprias regras. O que ele não aceita é que os homens sejam jactanciosos, tomando como suas as obras que são dele. Deus nunca aceitou a jactância daqueles que são instrumentos da consecução dos seus decretos. Por essa razão ele pune o rei da Assíria (v.12) e os seus homens (v.16), dizendo:
“Porventura gloriar-se-á o machado contra o que corta com ele? ou presumirá a serra contra o que a maneja? Seria isso como se a vara brandisse os que a levantam, ou o bastão levantasse a quem não é pau!” (v.15)
Portanto, por tudo o que aconteceu, Deus considera a Assíria responsável. “A razão pela qual Deus promulga um “ai” sobre ela, não é porque ele está castigando o povo do pacto de Deus, mas porque eles pensaram em sua própria arrogância que os que estavam fazendo o faziam por sua própria força,” [31] mesmo considerando que Ele próprio havia ordenado a Assíria toda aquela obra de violência. Então, Deus puniu todo o exército da Assíria e, numa noite, 188 mil soldados foram mortos, e Senaqueribe foi morto por seus próprios filhos (2 Rs 19.35-37).
Todos os reis tiranos e conquistadores deste mundo, como Alexandre, o grande, Júlio César, Napoleão, etc., executaram a vontade decretiva de Deus em sua obra providencial. Assim mesmo, são considerados culpados, porque fizeram todas as coisas pensando em si mesmos e fizeram com toda a maldade dos seus corações ímpios, e foram punidos. Eles serviram a Deus, mas nunca foi desejo deles servi-lo. Dizendo de uma maneira diferente, podemos dizer que Deus serviu-se deles, mas nunca foi servido. Eles fizeram a vontade do Senhor, mas nunca pensaram sequer em fazê-la. É assim que opera misteriosamente a ação humana juntamente com a ação concorrente de Deus.
Carson pondera que além de toda dúvida que Isaías, ao menos, “era compatibilista”. [32] Em vários lugares do seu livro Isaías assumiu a idéia de que seu Deus era governador do universo e todos os seres viventes eram instrumentos da execução da sua vontade. Sua vontade foi sempre feita, a dos homens também, mas a destes está sempre condicionada à daquele.
Exemplo de Absalão
Observe o ato maldoso de Absalão
Este exemplo maldoso de Absalão está registrado nas Escrituras com estas palavras:
2 Sm 16.20-22 – Então disse Absalão a Aitofel: Dai o vosso conselho sobre o que devemos fazer. Disse Aitofel a Absalão: Coabita com as concubinas de teu pai, que deixou para cuidar da casa; e, em ouvindo todo o Israel que te fizeste odioso para com teu pai, animar-se-ão todos os que estão contigo. Armaram, pois, para Absalão uma tenda no eirado, e ali, à vista de todo o Israel, ele coabitou com as concubinas de seu pai.
Observe os motivos sujos de Absalão
Após meditar no conselho de Aitofel, ele praticou tão hedionda ação. Deve ser observado que ele queria o poder que o reino lhe traria, e que para isso ele teria que ter o respaldo e o apoio do povo. O povo andava insatisfeito com Davi e, para ganhar a opinião pública, especialmente dos descontentes do reino, Absalão aceitou o conselho ímpio de Aitofel. Seu ato foi de tal abominação que ele o praticou ao ar livre. Teve relações sexuais públicas, para que todo o povo pudesse ver, que é dito ser, no v.23, uma “resposta de Deus a uma consulta”.
Observe a livre-agência de Absalão
Fazendo o que fez, Absalão fez tudo conforme as suas próprias disposições, segundo o gosto do seu coração, voluntariamente, sem ser coagido por ninguém. Ele fez toda a sua vontade, expressando sua maldade. Apenas tomou conselho com os seus conselheiros, e mostrou seu coração maligno para com seu pai. Seguindo o conselho errado de Aitofel, Absalão recebeu a paga por tal atitude. Ele foi considerado culpado porque o Senhor disse em 17.14, pois o mal sobreveio sobre ele.
Observe o Decreto divino
Se tivéssemos apenas esta informação de 2 Sm 16.20-22 sobre a ação má de Absalão, não seria difícil de entendê-la, pois tantos homens têm cometido, na história do mundo, os mesmos pecados de fazer conspiração contra seus próprios parentes para obterem o poder. Mas a Bíblia mostra outras informações reveladoras sobre este ato de Absalão. Veja o que diz 2 Sm 12.11-12 após o pecado de Davi contra Batseba, por boca do profeta Natã:
“Assim diz o Senhor: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o que se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas Eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol.”[33]
Absalão fez exatamente o que queria, pecando voluntariamente contra seu pai. Tanto Absalão quanto Aitofel cometeram seus atos maus e foram considerados responsáveis por eles, a despeito da ordenação divina e de Sua concorrência.
A atividade de Deus é revelada, não como um deus ex machina, mas na ação de Aitofel e de Absalão. O plano maligno de Aitofel e a realização dele por Absalão é o produto de uma ação divina sobre eles, mas de tal modo que a responsabilidade dos atos maus é sempre daqueles que os fizeram de acordo com suas vis paixões. Isto é concursus.
Observe a punição de Absalão
Deus havia dito que o sangue pela espada não se apartaria da casa de Davi, por causa do seu pecado. Então Joabe, servo de Davi, traspassa Absalão à espada (2 Sm 18.14). Agora Davi contempla a morte violenta do seu próprio filho, que foi fruto da profecia divina.
Aitofel havia dado um bom conselho a Absalão, a fim de que ele o autorizasse a matar Davi, aproveitando-se da oportunidade da velhice de Davi (2 Sm 17.1-2). Todavia, um outro conselheiro, Husai, deu um conselho diferente, advertindo-o a não seguir o conselho de Aitofel (2 Sm 17.7-13). Absalão recusou o de Aitofel e seguiu o de Husai.
Observe, por detrás do episódio a obra providencial de Deus para que Absalão fosse morto de maneira que ele pagasse por sempre dar ouvidos a maus conselhos e por fazer as obras más que fez.
2 Sm 17.14 – “Então disseram a Absalão e todos os homens de Israel: Melhor é o conselho de Husai, o arquita, do que o de Aitofel. Pois ordenara o Senhor que fosse dissipado o bom conselho de Aitofel, para que o mal sobreviesse contra Absalão.”
A obra concursiva de Deus por detrás do conselho de Husai, demovendo Absalão de ouvir o bom conselho de Aitofel. Deus cumpre o seu decreto de matar Absalão como parte de sua promessa de ferir a espada todos os descendentes de Davi, mas faz de tal modo que ele usa as ações livres dos homens. Tanto Husai quanto Absalão fizeram o que fizeram movidos por sua própria natureza pecaminosa. Da mesma forma fez Joabe, que foi o instrumento da morte de Absalão.
Aplicação
Este assunto é fortemente combatido pelos arminianos que não aceitam a concorrência divina nos atos dos homens, porque eles crêem que os atos deles são absolutamente livres, sem serem forçados de fora (com o que concordamos) ou de dentro. Quanto a esta última alternativa, é absolutamente impossível concordar. O homem nunca foi e nunca será moralmente neutro. Ele sempre será condicionado a fazer qualquer coisa de acordo com a sua própria natureza. O homem não mais tem o livre arbítrio, como Adão teve. Portanto, ele sempre haverá de agir levado por sua condição interior.
Sempre haverá um concursus de Deus nos atos bons e maus dos homens, mesmo embora não possamos entender em plenitude como isso se efetua, especialmente no que diz respeito aos atos maus dos homens, quando consideramos a natureza santa de Deus. Mas a própria Escritura não faz segredo daquilo que Deus faz. Ela não explica as razões últimas de Deus, mas afirma categoricamente a cooperação de Deus nos atos dos homens, fator preponderante que explica o Seu governo na história do mundo. Do contrário, como controlaria Ele o mundo e como os seus planos seriam realizados?
Deus age providencialmente, embora nem sempre possamos entender plenamente ação da Primeira Causa sobre as Causas Secundárias. Esta é uma atividade misteriosa de Deus, e ele não nos tem contado o segredo de sua ação, que nem sempre é crida pelos homens, mas que inegavelmente é afirmada nas Escrituras.
Na verdade, temos que reconhecer que não temos as respostas finais neste assunto. Não existe uma explicação plenamente satisfatória para o problema. Portanto, o problema do modus operandi na relação entre Deus e o pecado de suas criaturas racionais continua sendo um grande mistério para os homens.
Deus não poderia governar se não fosse Deus. E não há Deus sem onipotência. Este atributo lhe dá as condições para executar plenamente tudo aquilo que planejou. Portanto, lembre-se de algumas verdades:
LEMBRE-SE DE QUE SE DEUS NÃO OPERASSE CONCURSIVAMENTE, ELE NÃO PODERIA CUMPRIR A HISTÓRIA
O decreto de Deus precisa ser cumprido por causa da eficiência dele. Por causa da sua natureza, Deus não pode determinar que um evento venha acontecer e, por falha das criaturas, ele não venha a acontecer.
As criaturas não são independentes de Deus em quaisquer de suas ações, sejam nas boas ou nas más. A fim de que os seres humanos cumpram os planos divinos, Deus tem não somente que superintender os atos humanos, mas dum modo misterioso ele tem concorrer naqueles atos de forma que nada do que ele planejou venha a falhar. Se entregues a si mesmos, os seres humanos provavelmente nunca cumpririam a vontade decretiva de Deus porque:
Os livre-agentes não sabem de antemão o que Deus decretou.
Deus nunca revela os homens os seus segredos. Não sabemos sequer o que nos acontecerá no dia de amanhã. Exceto em algumas situações específicas que Deus já anunciou que acontecerão de antemão, e elas estão registradas nas Escrituras, os homens não possuem noção qualquer noção do que lhes acontecerá ou o que acontecerá no contexto em que eles vivem. Por essa razão, para que os eventos decretados aconteçam, Deus tem que agir cooperadoramente na vida dos homens.
Os livre-agentes não têm poder sobre as circunstâncias nas quais os eventos estão envolvidos.
Ainda que os seres humanos soubessem do que estava para acontecer, não poderiam sozinhos ter domínio sobre as circunstâncias todas. A realização da história depende de uma grande combinação de fatores que só podem ser ativados por uma mente que possui todas as coisas nas suas mãos. Somente uma mente infinita pode Ter controle sobre todos os detalhes que se encaixam perfeitamente e, assim, os eventos decretados vêm à sua realização.
LEMBRE-SE DE QUE TODOS NÓS SOMOS COOPERADORES DE DEUS NO CUMPRIMENTO DOS SEUS DECRETOS
Como você notará em capítulos seguintes, todos os seres humanos somos cooperadores de Deus na execução do seu grande plano para este universo, que ainda está debaixo do pecado. Deus usa a nossa livre-agência, a nossa voluntariedade, a nossa capacidade de tomar decisões, para cumprir os seus desígnios. A fim de que isso aconteça ele trabalha em nosso espírito para que realizemos – segundo a nossa vontade – aquilo que é a sua vontade.
Deus é o Senhor da história, porque não somente ele a escreveu de antemão, mas também porque ele a conduz. Nós somos os agentes através dos quais Deus realiza a sua história. Mesmo sem saber, todos os homens ímpios, quando fazem a sua vontade, acabam fazendo a vontade de Deus no que respeita ao cumprimento dos seus planos.
Isto é maravilhoso para aquele que conhece dia a dia mais o Deus da Escritura. Esse assunto (ao mesmo tempo que intriga) encanta a nossa alma! Que Deus poderosamente soberano é esse!
Cada vez que estudo estas coisas eu me assombro maravilhado do que me possui e a quem eu pertenço. Eu não me iro dele ser assim. Isso só me faz repousar nele, pois tenho a certeza de que todas as coisas estão no controle absoluto dele. Se assim não fosse, como poderia ele próprio ter certeza de que seus planos se realizariam. Se Deus não tem essa certeza, que esperança podemos ter nele?
Procure estudar esta matéria com maior carinho e santa reverência, porque Deus precisa ser reverenciado mercê dessas coisas que ele é e faz.
LEMBRE-SE DE QUE O CONCURSUS É UM MISTÉRIO PARA O QUAL DEUS NÃO DEU EXPLICAÇÕES
Por mais que você venha a conhecer este assunto profundo, você nunca entenderá como são as operações concursivas de Deus na mente das pessoas, inclinando-as a fazerem exatamente aquilo que está determinado, sem que ele contrarie a sua própria natureza santa.
Esse modus operandi de Deus é absolutamente misterioso. Ele é maravilhosamente secreto. Nunca se jacte de entendê-lo completamente. Creia, sim, que Deus age na vida das pessoas incitando-as a cumprirem os seus planos, mas nunca diga que você já conhece o modo de operação dele. Seria pretensão nossa descobrir estes arcanos divinos!
Apenas seja humilde, reconhecido da sua pequenez. Nada mais. Curve a sua cabeça, curvando-se diante da majestosa sabedoria dele que faz com todas as coisas aconteçam, sem nunca ferir a liberdade humana, sem nunca forçar o homem a fazer nada contra a sua própria vontade, mas faz com que todos os seus decretos sejam literalmente cumpridos e os homens se sintam responsáveis por todos os seus atos.
Nos atos bons, mesmo agindo voluntariamente, os homens sempre darão glória a Deus por eles, porque eles sabem que é Deus quem “opera neles o querer e o realizar”; nos atos maus, todavia, em que os homens também agem voluntariamente, eles sempre se sentirão culpados porque eles agem responsavelmente. Em todos os atos, bons ou maus, há uma atividade cooperadora de Deus. Nos primeiros Deus leva a glória; nos últimos os seres racionais levam a culpa. Isso não é espantosamente maravilhoso? Somente Deus pode agir de um modo tão maravilhosamente misterioso! Esse é o Deus das Escrituras em quem devemos crer, a quem devemos amar e de quem devemos falar.
[1] É uma palavra latina que significa “concorrência” ou “cooperação”.
[2] Berkhof, p. 202.
[3] Como as da criação natural e criação espiritual, por exemplo, onde Deus age sem o concursus de Suas criaturas racionais.
[4] Ver ainda à Brakel, The Christian´s Reasonable Service, vol. 1, (Soli Deo Gloria Publications, edição 1992), 336-337
[5] R.C. Sproul, The Invisible Hand, 100.
[6] Sproul, The Invisible Hand, 104-105.
[7] Benjamin W. Farley, The Providence of God, 40.
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] Michael Eaton, Ecclesiastes, TOTC (Downers Grove, Ill: Intervarsity Press, 1983), 70.
[11] Parte da letra do estribilho do hino 50 do Hinário Presbiteriano.
[12] Sproul gasta várias páginas na distinção destes dois termos, que são muito importantes para a compreensão desta matéria (ver R.C. Sproul, The Invisible Hand, (Dallas: Word Publishing, 1996), 80-86.
[13] Sproul, The Invisible Hand, 83.
[14] Donald Carson é quem usa esse termo freqüentemente em sua obra How long, O Lord?, 201 e sgts.
[15] Louis Berkhof, Teologia Sistematica, (edição espanhola), 296.
[16] Carson, How Long, O Lord?, 213.
[17] D. A. Carson, How Long, O Lord?, (Grand Rapids: Baker Book House, 1990), p. 205.
[18] Carson, How Long, O Lord?, 218.
[19] Anthony Hoekema, Created in God”s Image, (Eerdmans, 1986), p. 236.
[20] Leia Gn 37.1-36.
[21] Leia 41.37-57; cap. 42 a 44.
[22] (Grifos meus)
[23] Grifos meus.
[24] Carson, p. 206.
[25] Se você quer informações sobre essas opiniões consulte o comentário bíblico de Matthew Henry sobre essa passagem.
[26] Servo pode ser designativo de alguém que alegremente obedece uma ordem de Deus, e também pode ser designativo daquele que é o instrumento da execução da vontade de Alguém maior. Esse segundo caso é o de Nabucodonozor.
[27] (Grifos meus). Ver também Jr 51.25-64;
[28] Berkouwer, p. 102.
[29] Berkouwer, p. 100.
[30] Ver 1 Reis 12.6-11.
[31] Carson, p. 208.
[32] Carson, p. 208.
[33] Grifos meus
Capítulo 10 do livro “O Ser de Deus e as Suas Obras: A Providência”, da Cultura Cristã.
Copiado de http://www.monergismo.com/textos/providencia/concursus_heber.htm em abril/2015